EXORTAÇÃO
APOSTÓLICA
EVANGELII GAUDIUM
DE PAPA FRANCISCO
DE PAPA FRANCISCO
AO EPISCOPADO, AO
CLERO ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E AOS FIÉIS LEIGOS
SOBRE O ANÚNCIO DO EVANGELHO NO MUNDO ATUAL
E AOS FIÉIS LEIGOS
SOBRE O ANÚNCIO DO EVANGELHO NO MUNDO ATUAL
Evangelii Gaudium
1. A ALEGRIA DO EVANGELHO enche o coração e a vida inteira daqueles que
se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do
pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo,
renasce sem cessar a alegria. Quero, com esta Exortação, dirigir-me aos fiéis
cristãos a fim de os convidar para uma nova etapa evangelizadora marcada por
esta alegria e indicar caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos.
1. Alegria que se renova e comunica
2. O grande risco do mundo actual, com sua múltipla e avassaladora
oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração comodista
e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência
isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de
haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de
Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de
fazer o bem. Este é um risco, certo e permanente, que correm também os crentes.
Muitos caem nele, transformando-se em pessoas ressentidas, queixosas, sem vida.
Esta não é a escolha duma vida digna e plena, este não é o desígnio que Deus
tem para nós, esta não é a vida no Espírito que jorra do coração de Cristo
ressuscitado.
3. Convido todo o cristão, em qualquer lugar e situação que se encontre,
a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a
tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de O procurar dia a dia sem
cessar. Não há motivo para alguém poder pensar que este convite não lhe diz
respeito, já que «da alegria trazida pelo Senhor ninguém é excluído». Quem
arrisca, o Senhor não o desilude; e, quando alguém dá um pequeno passo em
direcção a Jesus, descobre que Ele já aguardava de braços abertos a sua
chegada. Este é o momento para dizer a Jesus Cristo: «Senhor, deixei-me
enganar, de mil maneiras fugi do vosso amor, mas aqui estou novamente para
renovar a minha aliança convosco. Preciso de Vós. Resgatai-me de novo, Senhor;
aceitai-me mais uma vez nos vossos braços redentores». Como nos faz bem voltar
para Ele, quando nos perdemos! Insisto uma vez mais: Deus nunca Se cansa de
perdoar, somos nós que nos cansamos de pedir a sua misericórdia. Aquele que nos
convidou a perdoar «setenta vezes sete» (Mt 18, 22) dá-nos o exemplo: Ele
perdoa setenta vezes sete. Volta uma vez e outra a carregar-nos aos seus
ombros. Ninguém nos pode tirar a dignidade que este amor infinito e inabalável
nos confere. Ele permite-nos levantar a cabeça e recomeçar, com uma ternura que
nunca nos defrauda e sempre nos pode restituir a alegria. Não fujamos da
ressurreição de Jesus; nunca nos demos por mortos, suceda o que suceder. Que
nada possa mais do que a sua vida que nos impele para diante!
4. Os livros do Antigo Testamento preanunciaram a alegria da salvação,
que havia de tornar-se superabundante nos tempos messiânicos. O profeta Isaías
dirige-se ao Messias esperado, saudando-O com regozijo: «Multiplicaste a
alegria, aumentaste o júbilo» (9, 2). E anima os habitantes de Sião a recebê-Lo
com cânticos: «Exultai de alegria!» (12, 6). A quem já O avistara no horizonte,
o profeta convida-o a tornar-se mensageiro para os outros: «Sobe a um alto
monte, arauto de Sião! Grita com voz forte, arauto de Jerusalém» (40, 9). A
criação inteira participa nesta alegria da salvação: «Cantai, ó céus! Exulta de
alegria, ó terra! Rompei em exclamações, ó montes! Na verdade, o Senhor consola
o seu povo e se compadece dos desamparados» (49, 13).
Zacarias, vendo o dia do Senhor, convida a vitoriar o Rei que chega
«humilde, montado num jumento»: «Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gritos
de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti. Ele é justo e
vitorioso» (9, 9). Mas o convite mais tocante talvez seja o do profeta
Sofonias, que nos mostra o próprio Deus como um centro irradiante de festa e de
alegria, que quer comunicar ao seu povo este júbilo salvífico. Enche-me de vida
reler este texto: «O Senhor, teu Deus, está no meio de ti como poderoso
salvador! Ele exulta de alegria por tua causa, pelo seu amor te renovará. Ele
dança e grita de alegria por tua causa» (3, 17).É a alegria que se vive no meio
das pequenas coisas da vida quotidiana, como resposta ao amoroso convite de
Deus nosso Pai: «Meu filho, se tens com quê, trata-te bem (...). Não te prives
da felicidade presente» (Sir 14, 11.14). Quanta ternura paterna se vislumbra
por detrás destas palavras!
5. O Evangelho, onde resplandece gloriosa a Cruz de Cristo, convida
insistentemente à alegria. Apenas alguns exemplos: «Alegra-te» é a saudação do
anjo a Maria (Lc 1, 28). A visita de Maria a Isabel faz com que João salte de
alegria no ventre de sua mãe (cf. Lc 1, 41). No seu cântico, Maria proclama: «O
meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador» (Lc 1, 47). E, quando Jesus
começa o seu ministério, João exclama: «Esta é a minha alegria! E tornou-se
completa!» (Jo 3, 29). O próprio Jesus «estremeceu de alegria sob a acção do
Espírito Santo» (Lc 10, 21). A sua mensagem é fonte de alegria: «Manifestei-vos
estas coisas, para que esteja em vós a minha alegria, e a vossa alegria seja
completa» (Jo 15, 11). A nossa alegria cristã brota da fonte do seu coração transbordante.
Ele promete aos seus discípulos: «Vós haveis de estar tristes, mas a vossa
tristeza há-de converter-se em alegria» (Jo 16, 20). E insiste: «Eu hei-de
ver-vos de novo! Então, o vosso coração há-de alegrar-se e ninguém vos poderá
tirar a vossa alegria» (Jo 16, 22). Depois, ao verem-No ressuscitado,
«encheram-se de alegria» (Jo 20, 20). O livro dos Actos dos Apóstolos conta
que, na primitiva comunidade, «tomavam o alimento com alegria» (2, 46). Por
onde passaram os discípulos, «houve grande alegria» (8, 8); e eles, no meio da
perseguição, «estavam cheios de alegria» (13, 52). Um eunuco, recém-baptizado,
«seguiu o seu caminho cheio de alegria» (8, 39); e o carcereiro «entregou-se,
com a família, à alegria de ter acreditado em Deus» (16, 34). Porque não
havemos de entrar, também nós, nesta torrente de alegria?
6. Há cristãos que parecem ter escolhido viver uma Quaresma sem Páscoa.
Reconheço, porém, que a alegria não se vive da mesma maneira em todas as etapas
e circunstâncias da vida, por vezes muito duras. Adapta-se e transforma-se, mas
sempre permanece pelo menos como um feixe de luz que nasce da certeza pessoal
de, não obstante o contrário, sermos infinitamente amados. Compreendo as
pessoas que se vergam à tristeza por causa das graves dificuldades que têm de
suportar, mas aos poucos é preciso permitir que a alegria da fé comece a
despertar, como uma secreta mas firme confiança, mesmo no meio das piores
angústias: «A paz foi desterrada da minha alma, já nem sei o que é a felicidade
(…). Isto, porém, guardo no meu coração; por isso, mantenho a esperança. É que
a misericórdia do Senhor não acaba, não se esgota a sua compaixão. Cada manhã
ela se renova; é grande a tua fidelidade. (...) Bom é esperar em silêncio a
salvação do Senhor» (Lm 3, 17.21-23.26).
7. A tentação apresenta-se, frequentemente, sob forma de desculpas e
queixas, como se tivesse de haver inúmeras condições para ser possível a
alegria. Habitualmente isto acontece, porque «a sociedade técnica teve a
possibilidade de multiplicar as ocasiões de prazer; no entanto ela encontra
dificuldades grandes no engendrar também a alegria». Posso dizer que as
alegrias mais belas e espontâneas, que vi ao longo da minha vida, são as
alegrias de pessoas muito pobres que têm pouco a que se agarrar. Recordo também
a alegria genuína daqueles que, mesmo no meio de grandes compromissos
profissionais, souberam conservar um coração crente, generoso e simples. De
várias maneiras, estas alegrias bebem na fonte do amor maior, que é o de Deus,
a nós manifestado em Jesus Cristo. Não me cansarei de repetir estas palavras de
Bento XVI que nos levam ao centro do Evangelho: «Ao início do ser cristão, não
há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento,
com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo
decisivo».
8. Somente graças a este encontro – ou reencontro – com o amor de Deus,
que se converte em amizade feliz, é que somos resgatados da nossa consciência
isolada e da auto-referencialidade. Chegamos a ser plenamente humanos, quando
somos mais do que humanos, quando permitimos a Deus que nos conduza para além
de nós mesmos a fim de alcançarmos o nosso ser mais verdadeiro. Aqui está a
fonte da acção evangelizadora. Porque, se alguém acolheu este amor que lhe
devolve o sentido da vida, como é que pode conter o desejo de o comunicar aos
outros?
2. A doce e reconfortante alegria de evangelizar
9. O bem tende sempre a comunicar-se. Toda a experiência autêntica de
verdade e de beleza procura, por si mesma, a sua expansão; e qualquer pessoa
que viva uma libertação profunda adquire maior sensibilidade face às
necessidades dos outros. E, uma vez comunicado, o bem radica-se e
desenvolve-se. Por isso, quem deseja viver com dignidade e em plenitude, não
tem outro caminho senão reconhecer o outro e buscar o seu bem. Assim, não nos
deveriam surpreender frases de São Paulo como estas: «O amor de Cristo nos
absorve completamente» (2 Cor 5, 14); «ai de mim, se eu não evangelizar!» (1
Cor 9, 16).
10. A proposta é viver a um nível superior, mas não com menor
intensidade: «Na doação, a vida se fortalece; e se enfraquece no comodismo e no
isolamento. De facto, os que mais desfrutam da vida são os que deixam a
segurança da margem e se apaixonam pela missão de comunicar a vida aos demais».
Quando a Igreja faz apelo ao compromisso evangelizador, não faz mais do que
indicar aos cristãos o verdadeiro dinamismo da realização pessoal: «Aqui
descobrimos outra profunda lei da realidade: “A vida se alcança e amadurece à
medida que é entregue para dar vida aos outros”. Isto é, definitivamente, a
missão». Consequentemente, um evangelizador não deveria ter constantemente uma
cara de funeral. Recuperemos e aumentemos o fervor de espírito, «a suave e
reconfortante alegria de evangelizar, mesmo quando for preciso semear com
lágrimas! (...) E que o mundo do nosso tempo, que procura ora na angústia ora
com esperança, possa receber a Boa Nova dos lábios, não de evangelizadores
tristes e descoroçoados, impacientes ou ansiosos, mas sim de ministros do
Evangelho cuja vida irradie fervor, pois foram quem recebeu primeiro em si a
alegria de Cristo».
Uma eterna novidade
11. Um anúncio renovado proporciona aos crentes, mesmo tíbios ou não
praticantes, uma nova alegria na fé e uma fecundidade evangelizadora. Na
realidade, o seu centro e a sua essência são sempre o mesmo: o Deus que
manifestou o seu amor imenso em Cristo morto e ressuscitado. Ele torna os seus
fiéis sempre novos; ainda que sejam idosos, «renovam as suas forças. Têm asas
como a águia, correm sem se cansar, marcham sem desfalecer» (Is 40, 31). Cristo
é a «Boa-Nova de valor eterno» (Ap 14, 6), sendo «o mesmo ontem, hoje e pelos
séculos» (Heb 13, 8), mas a sua riqueza e a sua beleza são inesgotáveis. Ele é
sempre jovem, e fonte de constante novidade. A Igreja não cessa de se
maravilhar com a «profundidade de riqueza, de sabedoria e de ciência de Deus»
(Rm 11, 33). São João da Cruz dizia: «Esta espessura de sabedoria e ciência de
Deus é tão profunda e imensa, que, por mais que a alma saiba dela, sempre pode
penetrá-la mais profundamente». Ou ainda, como afirmava Santo Ireneu: «Na sua
vinda, [Cristo] trouxe consigo toda a novidade». Com a sua novidade, Ele pode
sempre renovar a nossa vida e a nossa comunidade, e a proposta cristã, ainda
que atravesse períodos obscuros e fraquezas eclesiais, nunca envelhece. Jesus
Cristo pode romper também os esquemas enfadonhos em que pretendemos
aprisioná-Lo, e surpreende-nos com a sua constante criatividade divina. Sempre
que procuramos voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho,
despontam novas estradas, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais
mais eloquentes, palavras cheias de renovado significado para o mundo actual.
Na realidade, toda a acção evangelizadora autêntica é sempre «nova».
12. Embora esta missão nos exija uma entrega generosa, seria um erro
considerá-la como uma heróica tarefa pessoal, dado que ela é, primariamente e
acima de tudo o que possamos sondar e compreender, obra de Deus. Jesus é «o
primeiro e o maior evangelizador». Em qualquer forma de evangelização, o
primado é sempre de Deus, que quis chamar-nos para cooperar com Ele e
impelir-nos com a força do seu Espírito. A verdadeira novidade é aquela que o
próprio Deus misteriosamente quer produzir, aquela que Ele inspira, aquela que
Ele provoca, aquela que Ele orienta e acompanha de mil e uma maneiras. Em toda
a vida da Igreja, deve-se sempre manifestar que a iniciativa pertence a Deus,
«porque Ele nos amou primeiro» (1 Jo 4, 19) e é «só Deus que faz crescer» (1
Cor 3, 7). Esta convicção permite-nos manter a alegria no meio duma tarefa tão
exigente e desafiadora que ocupa inteiramente a nossa vida. Pede-nos tudo, mas
ao mesmo tempo dá-nos tudo.
13. E também não deveremos entender a novidade desta missão como um
desenraizamento, como um esquecimento da história viva que nos acolhe e impele
para diante. A memória é uma dimensão da nossa fé, que, por analogia com a
memória de Israel, poderíamos chamar «deuteronómica». Jesus deixa-nos a
Eucaristia como memória quotidiana da Igreja, que nos introduz cada vez mais na
Páscoa (cf. Lc 22, 19). A alegria evangelizadora refulge sempre sobre o
horizonte da memória agradecida: é uma graça que precisamos de pedir. Os
Apóstolos nunca mais esqueceram o momento em que Jesus lhes tocou o coração:
«Eram as quatro horas da tarde» (Jo 1, 39). A memória faz-nos presente,
juntamente com Jesus, uma verdadeira «nuvem de testemunhas» (Heb 12, 1). De
entre elas, distinguem-se algumas pessoas que incidiram de maneira especial
para fazer germinar a nossa alegria crente: «Recordai-vos dos vossos guias, que
vos pregaram a palavra de Deus» (Heb 13, 7). Às vezes, trata-se de pessoas
simples e próximas de nós, que nos iniciaram na vida da fé: «Trago à memória a
tua fé sem fingimento, que se encontrava já na tua avó Lóide e na tua mãe Eunice»
(2 Tm 1, 5). O crente é, fundamentalmente, «uma pessoa que faz memória».
3. A nova evangelização para a transmissão da fé
14. À escuta do Espírito, que nos ajuda a reconhecer comunitariamente os
sinais dos tempos, celebrou-se de 7 a 28 de Outubro de 2012 a XIII Assembleia
Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, sobre o tema A nova evangelização para a
transmissão da fé cristã. Lá foi recordado que a nova evangelização interpela a
todos, realizando-se fundamentalmente em três âmbitos. Em primeiro lugar, mencionamos
o âmbito da pastoral ordinária, «animada pelo fogo do Espírito a fim de
incendiar os corações dos fiéis que frequentam regularmente a comunidade,
reunindo-se no dia do Senhor, para se alimentarem da sua Palavra e do Pão de
vida eterna». Devem ser incluídos também neste âmbito os fiéis que conservam
uma fé católica intensa e sincera, exprimindo-a de diversos modos, embora não
participem frequentemente no culto. Esta pastoral está orientada para o
crescimento dos crentes, a fim de corresponderem cada vez melhor e com toda a
sua vida ao amor de Deus.
Em segundo lugar, lembramos o âmbito das «pessoas baptizadas que, porém,
não vivem as exigências do Baptismo», não sentem uma pertença cordial à Igreja
e já não experimentam a consolação da fé. Mãe sempre solícita, a Igreja
esforça-se para que elas vivam uma conversão que lhes restitua a alegria da fé
e o desejo de se comprometerem com o Evangelho.
Por fim, frisamos que a evangelização está essencialmente relacionada
com a proclamação do Evangelho àqueles que não conhecem Jesus Cristo ou que
sempre O recusaram. Muitos deles buscam secretamente a Deus, movidos pela
nostalgia do seu rosto, mesmo em países de antiga tradição cristã. Todos têm o
direito de receber o Evangelho. Os cristãos têm o dever de o anunciar, sem
excluir ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem
partilha uma alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um banquete
apetecível. A Igreja não cresce por proselitismo, mas «por atracção».
15. João Paulo II convidou-nos a reconhecer que «não se pode perder a
tensão para o anúncio» àqueles que estão longe de Cristo, «porque esta é a
tarefa primária da Igreja». A actividade missionária «ainda hoje representa o
máximo desafio para a Igreja» e «a causa missionária deve ser (…) a primeira de
todas as causas». Que sucederia se tomássemos realmente a sério estas palavras?
Simplesmente reconheceríamos que a acção missionária é o paradigma de toda a
obra da Igreja. Nesta linha, os Bispos latino-americanos afirmaram que «não podemos
ficar tranquilos, em espera passiva, em nossos templos», sendo necessário
passar «de uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente
missionária». Esta tarefa continua a ser a fonte das maiores alegrias para a
Igreja: «Haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se converte, do que
por noventa e nove justos que não necessitam de conversão» (Lc 15, 7).
A proposta desta Exortação e seus contornos
16. Com prazer, aceitei o convite dos Padres sinodais para redigir esta
Exortação. Para o efeito, recolho a riqueza dos trabalhos do Sínodo; consultei
também várias pessoas e pretendo, além disso, exprimir as preocupações que me
movem neste momento concreto da obra evangelizadora da Igreja. Os temas
relacionados com a evangelização no mundo actual, que se poderiam desenvolver
aqui, são inumeráveis. Mas renunciei a tratar detalhadamente esta
multiplicidade de questões que devem ser objecto de estudo e aprofundamento
cuidadoso. Penso, aliás, que não se deve esperar do magistério papal uma palavra
definitiva ou completa sobre todas as questões que dizem respeito à Igreja e ao
mundo. Não convém que o Papa substitua os episcopados locais no discernimento
de todas as problemáticas que sobressaem nos seus territórios. Neste sentido,
sinto a necessidade de proceder a uma salutar «descentralização».
17. Aqui escolhi propor algumas directrizes que possam encorajar e
orientar, em toda a Igreja, uma nova etapa evangelizadora, cheia de ardor e
dinamismo. Neste quadro e com base na doutrina da Constituição dogmática Lumen
gentium, decidi, entre outros temas, de me deter amplamente sobre as seguintes
questões:
a) A reforma da Igreja em saída missionária.b) As tentações dos agentes
pastorais.
c) A Igreja vista como a totalidade do povo de Deus que evangeliza.d) A
homilia e a sua preparação.
e) A inclusão social dos pobres.f) A paz e o diálogo social.
g) As motivações espirituais para o compromisso missionário.
18. Demorei-me nestes temas, desenvolvendo-os dum modo que talvez possa
parecer excessivo. Mas não o fiz com a intenção de oferecer um tratado, mas só
para mostrar a relevante incidência prática destes assuntos na missão actual da
Igreja. De facto, todos eles ajudam a delinear um preciso estilo evangelizador,
que convido a assumir em qualquer actividade que se realize. E, desta forma,
podemos assumir, no meio do nosso trabalho diário, esta exortação da Palavra de
Deus: «Alegrai-vos sempre no Senhor! De novo vos digo: alegrai-vos!» (Fl 4, 4).
Capítulo I
A TRANSFORMAÇÃO MISSIONÁRIA DA IGREJA
19. A evangelização obedece ao mandato missionário de Jesus: «Ide, pois,
fazei discípulos de todos os povos, baptizando-os em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado» (Mt 28,
19-20). Nestes versículos, aparece o momento em que o Ressuscitado envia os
seus a pregar o Evangelho em todos os tempos e lugares, para que a fé n’Ele se
estenda a todos os cantos da terra.
1. Uma Igreja «em saída»
20. Na Palavra de Deus, aparece constantemente este dinamismo de
«saída», que Deus quer provocar nos crentes. Abraão aceitou a chamada para
partir rumo a uma nova terra (cf. Gn 12, 1-3). Moisés ouviu a chamada de Deus:
«Vai; Eu te envio» (Ex 3, 10), e fez sair o povo para a terra prometida (cf. Ex
3, 17). A Jeremias disse: «Irás aonde Eu te enviar» (Jr 1, 7). Naquele «ide» de
Jesus, estão presentes os cenários e os desafios sempre novos da missão
evangelizadora da Igreja, e hoje todos somos chamados a esta nova «saída»
missionária. Cada cristão e cada comunidade há-de discernir qual é o caminho
que o Senhor lhe pede, mas todos somos convidados a aceitar esta chamada: sair
da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que
precisam da luz do Evangelho.
21. A alegria do Evangelho, que enche a vida da comunidade dos
discípulos, é uma alegria missionária. Experimentam-na os setenta e dois
discípulos, que voltam da missão cheios de alegria (cf. Lc 10, 17). Vive-a
Jesus, que exulta de alegria no Espírito Santo e louva o Pai, porque a sua
revelação chega aos pobres e aos pequeninos (cf. Lc 10, 21). Sentem-na, cheios
de admiração, os primeiros que se convertem no Pentecostes, ao ouvir «cada um
na sua própria língua» (Act 2, 6) a pregação dos Apóstolos. Esta alegria é um
sinal de que o Evangelho foi anunciado e está a frutificar. Mas contém sempre a
dinâmica do êxodo e do dom, de sair de si mesmo, de caminhar e de semear sempre
de novo, sempre mais além. O Senhor diz: «Vamos para outra parte, para as
aldeias vizinhas, a fim de pregar aí, pois foi para isso que Eu vim» (Mc 1,
38). Ele, depois de lançar a semente num lugar, não se demora lá a explicar
melhor ou a cumprir novos sinais, mas o Espírito leva-O a partir para outras
aldeias.
22. A Palavra possui, em si mesma, uma tal potencialidade, que não a
podemos prever. O Evangelho fala da semente que, uma vez lançada à terra,
cresce por si mesma, inclusive quando o agricultor dorme (cf. Mc 4, 26-29). A
Igreja deve aceitar esta liberdade incontrolável da Palavra, que é eficaz a seu
modo e sob formas tão variadas que muitas vezes nos escapam, superando as
nossas previsões e quebrando os nossos esquemas.
23. A intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade itinerante, e a
comunhão «reveste essencialmente a forma de comunhão missionária». Fiel ao
modelo do Mestre, é vital que hoje a Igreja saia para anunciar o Evangelho a
todos, em todos os lugares, em todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias
e sem medo. A alegria do Evangelho é para todo o povo, não se pode excluir
ninguém; assim foi anunciada pelo anjo aos pastores de Belém: «Não temais, pois
anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo» (Lc 2, 10). O
Apocalipse fala de «uma Boa-Nova de valor eterno para anunciar aos habitantes
da terra: a todas as nações, tribos, línguas e povos» (Ap 14, 6).
«Primeirear», envolver-se, acompanhar, frutificar e festejar
24. A Igreja «em saída» é a comunidade de discípulos missionários que
«primeireiam», que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam.
Primeireiam – desculpai o neologismo –, tomam a iniciativa! A comunidade
missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor
(cf. 1 Jo 4, 10), e, por isso, ela sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa
sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos
caminhos para convidar os excluídos. Vive um desejo inexaurível de oferecer
misericórdia, fruto de ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua
força difusiva. Ousemos um pouco mais no tomar a iniciativa! Como consequência,
a Igreja sabe «envolver-se». Jesus lavou os pés aos seus discípulos. O Senhor
envolve-Se e envolve os seus, pondo-Se de joelhos diante dos outros para os
lavar; mas, logo a seguir, diz aos discípulos: «Sereis felizes se o puserdes em
prática» (Jo 13, 17). Com obras e gestos, a comunidade missionária entra na
vida diária dos outros, encurta as distâncias, abaixa-se – se for necessário –
até à humilhação e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no
povo. Os evangelizadores contraem assim o «cheiro de ovelha», e estas escutam a
sua voz. Em seguida, a comunidade evangelizadora dispõe-se a «acompanhar».
Acompanha a humanidade em todos os seus processos, por mais duros e demorados
que sejam. Conhece as longas esperas e a suportação apostólica. A evangelização
patenteia muita paciência, e evita deter-se a considerar as limitações. Fiel ao
dom do Senhor, sabe também «frutificar». A comunidade evangelizadora mantém-se
atenta aos frutos, porque o Senhor a quer fecunda. Cuida do trigo e não perde a
paz por causa do joio. O semeador, quando vê surgir o joio no meio do trigo,
não tem reacções lastimosas ou alarmistas. Encontra o modo para fazer com que a
Palavra se encarne numa situação concreta e dê frutos de vida nova, apesar de
serem aparentemente imperfeitos ou defeituosos. O discípulo sabe oferecer a
vida inteira e jogá-la até ao martírio como testemunho de Jesus Cristo, mas o
seu sonho não é estar cheio de inimigos, mas antes que a Palavra seja acolhida
e manifeste a sua força libertadora e renovadora. Por fim, a comunidade
evangelizadora jubilosa sabe sempre «festejar»: celebra e festeja cada pequena
vitória, cada passo em frente na evangelização. No meio desta exigência diária
de fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa torna-se beleza na liturgia. A
Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia, que é também
celebração da actividade evangelizadora e fonte dum renovado impulso para se
dar.
2. Pastoral em conversão
25. Não ignoro que hoje os documentos não suscitam o mesmo interesse que
noutras épocas, acabando rapidamente esquecidos. Apesar disso sublinho que,
aquilo que pretendo deixar expresso aqui, possui um significado programático e
tem consequências importantes. Espero que todas as comunidades se esforcem por
actuar os meios necessários para avançar no caminho duma conversão pastoral e
missionária, que não pode deixar as coisas como estão. Neste momento, não nos
serve uma «simples administração». Constituamo-nos em «estado permanente de missão»,
em todas as regiões da terra.
26. Paulo VI convidou a alargar o apelo à renovação de modo que
ressalte, com força, que não se dirige apenas aos indivíduos, mas à Igreja
inteira. Lembremos este texto memorável, que não perdeu a sua força
interpeladora: «A Igreja deve aprofundar a consciência de si mesma, meditar
sobre o seu próprio mistério (...). Desta consciência esclarecida e operante
deriva espontaneamente um desejo de comparar a imagem ideal da Igreja, tal como
Cristo a viu, quis e amou, ou seja, como sua Esposa santa e imaculada (Ef 5,
27), com o rosto real que a Igreja apresenta hoje. (…) Em consequência disso,
surge uma necessidade generosa e quase impaciente de renovação, isto é, de
emenda dos defeitos, que aquela consciência denuncia e rejeita, como se fosse
um exame interior ao espelho do modelo que Cristo nos deixou de Si mesmo».
O Concílio Vaticano II apresentou a conversão eclesial como a abertura a
uma reforma permanente de si mesma por fidelidade a Jesus Cristo: «Toda a
renovação da Igreja consiste essencialmente numa maior fidelidade à própria
vocação. (…) A Igreja peregrina é chamada por Cristo a esta reforma perene.
Como instituição humana e terrena, a Igreja necessita perpetuamente desta
reforma». Há estruturas eclesiais que podem chegar a condicionar um dinamismo
evangelizador; de igual modo, as boas estruturas servem quando há uma vida que
as anima, sustenta e avalia. Sem vida nova e espírito evangélico autêntico, sem
«fidelidade da Igreja à própria vocação», toda e qualquer nova estrutura se
corrompe em pouco tempo.
Uma renovação eclesial inadiável
27. Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que
os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial
se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo actual que à
auto-preservação. A reforma das estruturas, que a conversão pastoral exige, só
se pode entender neste sentido: fazer com que todas elas se tornem mais
missionárias, que a pastoral ordinária em todas as suas instâncias seja mais
comunicativa e aberta, que coloque os agentes pastorais em atitude constante de
«saída» e, assim, favoreça a resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus
oferece a sua amizade. Como dizia João Paulo II aos Bispos da Oceânia, «toda a
renovação na Igreja há-de ter como alvo a missão, para não cair vítima duma
espécie de introversão eclesial».
28. A paróquia não é uma estrutura caduca; precisamente porque possui
uma grande plasticidade, pode assumir formas muito diferentes que requerem a
docilidade e a criatividade missionária do Pastor e da comunidade. Embora não
seja certamente a única instituição evangelizadora, se for capaz de se reformar
e adaptar constantemente, continuará a ser «a própria Igreja que vive no meio
das casas dos seus filhos e das suas filhas». Isto supõe que esteja realmente
em contacto com as famílias e com a vida do povo, e não se torne uma estrutura
complicada, separada das pessoas, nem um grupo de eleitos que olham para si
mesmos. A paróquia é presença eclesial no território, âmbito para a escuta da
Palavra, o crescimento da vida cristã, o diálogo, o anúncio, a caridade
generosa, a adoração e a celebração. Através de todas as suas actividades, a
paróquia incentiva e forma os seus membros para serem agentes da evangelização.
É comunidade de comunidades, santuário onde os sedentos vão beber para
continuarem a caminhar, e centro de constante envio missionário. Temos, porém,
de reconhecer que o apelo à revisão e renovação das paróquias ainda não deu
suficientemente fruto, tornando-se ainda mais próximas das pessoas, sendo
âmbitos de viva comunhão e participação e orientando-se completamente para a
missão.
29. As outras instituições eclesiais, comunidades de base e pequenas
comunidades, movimentos e outras formas de associação são uma riqueza da Igreja
que o Espírito suscita para evangelizar todos os ambientes e sectores.
Frequentemente trazem um novo ardor evangelizador e uma capacidade de diálogo
com o mundo que renovam a Igreja. Mas é muito salutar que não percam o contacto
com esta realidade muito rica da paróquia local e que se integrem de bom grado
na pastoral orgânica da Igreja particular. Esta integração evitará que fiquem
só com uma parte do Evangelho e da Igreja, ou que se transformem em nómades sem
raízes.
30. Cada Igreja particular, porção da Igreja Católica sob a guia do seu
Bispo, está, também ela, chamada à conversão missionária. Ela é o sujeito
primário da evangelização, enquanto é a manifestação concreta da única Igreja
num lugar da terra e, nela, «está verdadeiramente presente e opera a Igreja de
Cristo, una, santa, católica e apostólica». É a Igreja encarnada num espaço
concreto, dotada de todos os meios de salvação dados por Cristo, mas com um
rosto local. A sua alegria de comunicar Jesus Cristo exprime-se tanto na sua
preocupação por anunciá-Lo noutros lugares mais necessitados, como numa
constante saída para as periferias do seu território ou para os novos âmbitos
socioculturais. Procura estar sempre onde fazem mais falta a luz e a vida do
Ressuscitado. Para que este impulso missionário seja cada vez mais intenso,
generoso e fecundo, exorto também cada uma das Igrejas particulares a entrar
decididamente num processo de discernimento, purificação e reforma.
31. O Bispo deve favorecer sempre a comunhão missionária na sua Igreja
diocesana, seguindo o ideal das primeiras comunidades cristãs, em que os
crentes tinham um só coração e uma só alma (cf. Act 4, 32) . Para isso, às
vezes pôr-se-á à frente para indicar a estrada e sustentar a esperança do povo,
outras vezes manter-se-á simplesmente no meio de todos com a sua proximidade
simples e misericordiosa e, em certas circunstâncias, deverá caminhar atrás do
povo, para ajudar aqueles que se atrasaram e sobretudo porque o próprio rebanho
possui o olfacto para encontrar novas estradas. Na sua missão de promover uma
comunhão dinâmica, aberta e missionária, deverá estimular e procurar o
amadurecimento dos organismos de participação propostos pelo Código de Direito
Canónico e de outras formas de diálogo pastoral, com o desejo de ouvir a todos,
e não apenas alguns sempre prontos a lisonjeá-lo. Mas o objectivo destes
processos participativos não há-de ser principalmente a organização eclesial,
mas o sonho missionário de chegar a todos.
32. Dado que sou chamado a viver aquilo que peço aos outros, devo pensar
também numa conversão do papado. Compete-me, como Bispo de Roma, permanecer
aberto às sugestões tendentes a um exercício do meu ministério que o torne mais
fiel ao significado que Jesus Cristo pretendeu dar-lhe e às necessidades actuais
da evangelização. O Papa João Paulo II pediu que o ajudassem a encontrar «uma
forma de exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é
essencial da sua missão, se abra a uma situação nova». Pouco temos avançado
neste sentido. Também o papado e as estruturas centrais da Igreja universal
precisam de ouvir este apelo a uma conversão pastoral. O Concílio Vaticano II
afirmou que, à semelhança das antigas Igrejas patriarcais, as conferências
episcopais podem «aportar uma contribuição múltipla e fecunda, para que o
sentimento colegial leve a aplicações concretas». Mas este desejo não se
realizou plenamente, porque ainda não foi suficientemente explicitado um
estatuto das conferências episcopais que as considere como sujeitos de
atribuições concretas, incluindo alguma autêntica autoridade doutrinal. Uma
centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a vida da Igreja e a sua
dinâmica missionária.
33. A pastoral em chave missionária exige o abandono deste cómodo
critério pastoral: «fez-se sempre assim». Convido todos a serem ousados e
criativos nesta tarefa de repensar os objectivos, as estruturas, o estilo e os
métodos evangelizadores das respectivas comunidades. Uma identificação dos
fins, sem uma condigna busca comunitária dos meios para os alcançar, está
condenada a traduzir-se em mera fantasia. A todos exorto a aplicarem, com
generosidade e coragem, as orientações deste documento, sem impedimentos nem
receios. Importante é não caminhar sozinho, mas ter sempre em conta os irmãos
e, de modo especial, a guia dos Bispos, num discernimento pastoral sábio e
realista.
3. A partir do coração do Evangelho
34. Se pretendemos colocar tudo em chave missionária, isso aplica-se
também à maneira de comunicar a mensagem. No mundo actual, com a velocidade das
comunicações e a selecção interessada dos conteúdos feita pelos mass-media, a
mensagem que anunciamos corre mais do que nunca o risco de aparecer mutilada e
reduzida a alguns dos seus aspectos secundários. Consequentemente, algumas
questões que fazem parte da doutrina moral da Igreja ficam fora do contexto que
lhes dá sentido. O problema maior ocorre quando a mensagem que anunciamos
parece então identificada com tais aspectos secundários, que, apesar de serem
relevantes, por si sozinhos não manifestam o coração da mensagem de Jesus
Cristo. Portanto, convém ser realistas e não dar por suposto que os nossos
interlocutores conhecem o horizonte completo daquilo que dizemos ou que eles
podem relacionar o nosso discurso com o núcleo essencial do Evangelho que lhe
confere sentido, beleza e fascínio.
35. Uma pastoral em chave missionária não está obsessionada pela
transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas que se tentam impor à
força de insistir. Quando se assume um objectivo pastoral e um estilo missionário,
que chegue realmente a todos sem excepções nem exclusões, o anúncio
concentra-se no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente
e, ao mesmo tempo, mais necessário. A proposta acaba simplificada, sem com isso
perder profundidade e verdade, e assim se torna mais convincente e radiosa.
36. Todas as verdades reveladas procedem da mesma fonte divina e são
acreditadas com a mesma fé, mas algumas delas são mais importantes por exprimir
mais directamente o coração do Evangelho. Neste núcleo fundamental, o que
sobressai é a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo
morto e ressuscitado. Neste sentido, o Concílio Vaticano II afirmou que «existe
uma ordem ou “hierarquia” das verdades da doutrina católica, já que o nexo delas
com o fundamento da fé cristã é diferente». Isto é válido tanto para os dogmas
da fé como para o conjunto dos ensinamentos da Igreja, incluindo a doutrina
moral.
37. São Tomás de Aquino ensinava que, também na mensagem moral da
Igreja, há uma hierarquia nas virtudes e acções que delas procedem. Aqui o que
conta é, antes de mais nada, «a fé que actua pelo amor» (Gal 5, 6). As obras de
amor ao próximo são a manifestação externa mais perfeita da graça interior do
Espírito: «O elemento principal da Nova Lei é a graça do Espírito Santo, que se
manifesta através da fé que opera pelo amor». Por isso afirma que,
relativamente ao agir exterior, a misericórdia é a maior de todas as virtudes:
«Em si mesma, a misericórdia é a maior das virtudes; na realidade, compete-lhe
debruçar-se sobre os outros e – o que mais conta – remediar as misérias
alheias. Ora, isto é tarefa especialmente de quem é superior; é por isso que se
diz que é próprio de Deus usar de misericórdia e é, sobretudo nisto, que se
manifesta a sua omnipotência».
38. É importante tirar as consequências pastorais desta doutrina
conciliar, que recolhe uma antiga convicção da Igreja. Antes de mais nada,
deve-se dizer que, no anúncio do Evangelho, é necessário que haja uma proporção
adequada. Esta reconhece-se na frequência com que se mencionam alguns temas e
nas acentuações postas na pregação. Por exemplo, se um pároco, durante um ano
litúrgico, fala dez vezes sobre a temperança e apenas duas ou três vezes sobre
a caridade ou sobre a justiça, gera-se uma desproporção, acabando obscurecidas
precisamente aquelas virtudes que deveriam estar mais presentes na pregação e
na catequese. E o mesmo acontece quando se fala mais da lei que da graça, mais
da Igreja que de Jesus Cristo, mais do Papa que da Palavra de Deus.
39. Tal como existe uma unidade orgânica entre as virtudes que impede de
excluir qualquer uma delas do ideal cristão, assim também nenhuma verdade é
negada. Não é preciso mutilar a integridade da mensagem do Evangelho. Além
disso, cada verdade entende-se melhor se a colocarmos em relação com a
totalidade harmoniosa da mensagem cristã: e, neste contexto, todas as verdades
têm a sua própria importância e iluminam-se reciprocamente. Quando a pregação é
fiel ao Evangelho, manifesta-se com clareza a centralidade de algumas verdades
e fica claro que a pregação moral cristã não é uma ética estóica, é mais do que
uma ascese, não é uma mera filosofia prática nem um catálogo de pecados e
erros. O Evangelho convida, antes de tudo, a responder a Deus que nos ama e
salva, reconhecendo-O nos outros e saindo de nós mesmos para procurar o bem de
todos. Este convite não há-de ser obscurecido em nenhuma circunstância! Todas
as virtudes estão ao serviço desta resposta de amor. Se tal convite não refulge
com vigor e fascínio, o edifício moral da Igreja corre o risco de se tornar um
castelo de cartas, sendo este o nosso pior perigo; é que, então, não estaremos
propriamente a anunciar o Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais ou
morais, que derivam de certas opções ideológicas. A mensagem correrá o risco de
perder o seu frescor e já não ter «o perfume do Evangelho».
4. A missão que se encarna nas limitações humanas
40. A Igreja, que é discípula missionária, tem necessidade de crescer na
sua interpretação da Palavra revelada e na sua compreensão da verdade. A tarefa
dos exegetas e teólogos ajuda a «amadurecer o juízo da Igreja». Embora de modo
diferente, fazem-no também as outras ciências. Referindo-se às ciências
sociais, por exemplo, João Paulo II disse que a Igreja presta atenção às suas
contribuições «para obter indicações concretas que a ajudem no cumprimento da
sua missão de Magistério». Além disso, dentro da Igreja, há inúmeras questões à
volta das quais se indaga e reflecte com grande liberdade. As diversas linhas
de pensamento filosófico, teológico e pastoral, se se deixam harmonizar pelo
Espírito no respeito e no amor, podem fazer crescer a Igreja, enquanto ajudam a
explicitar melhor o tesouro riquíssimo da Palavra. A quantos sonham com uma
doutrina monolítica defendida sem nuances por todos, isto poderá parecer uma
dispersão imperfeita; mas a realidade é que tal variedade ajuda a manifestar e
desenvolver melhor os diversos aspectos da riqueza inesgotável do Evangelho.
41. Ao mesmo tempo, as enormes e rápidas mudanças culturais exigem que
prestemos constante atenção ao tentar exprimir as verdades de sempre numa
linguagem que permita reconhecer a sua permanente novidade; é que, no depósito
da doutrina cristã, «uma coisa é a substância (...) e outra é a formulação que
a reveste». Por vezes, mesmo ouvindo uma linguagem totalmente ortodoxa, aquilo
que os fiéis recebem, devido à linguagem que eles mesmos utilizam e
compreendem, é algo que não corresponde ao verdadeiro Evangelho de Jesus
Cristo. Com a santa intenção de lhes comunicar a verdade sobre Deus e o ser
humano, nalgumas ocasiões, damos-lhes um falso deus ou um ideal humano que não
é verdadeiramente cristão. Deste modo, somos fiéis a uma formulação, mas não
transmitimos a substância. Este é o risco mais grave. Lembremo-nos de que «a
expressão da verdade pode ser multiforme. E a renovação das formas de expressão
torna-se necessária para transmitir ao homem de hoje a mensagem evangélica no
seu significado imutável».
42. Isto possui uma grande relevância no anúncio do Evangelho, se temos
verdadeiramente a peito fazer perceber melhor a sua beleza e fazê-la acolher
por todos. Em todo o caso, não poderemos jamais tornar os ensinamentos da
Igreja uma realidade facilmente compreensível e felizmente apreciada por todos;
a fé conserva sempre um aspecto de cruz, certa obscuridade que não tira firmeza
à sua adesão. Há coisas que se compreendem e apreciam só a partir desta adesão
que é irmã do amor, para além da clareza com que se possam compreender as
razões e os argumentos. Por isso, é preciso recordar-se de que cada ensinamento
da doutrina deve situar-se na atitude evangelizadora que desperte a adesão do
coração com a proximidade, o amor e o testemunho.
43. No seu constante discernimento, a Igreja pode chegar também a
reconhecer costumes próprios não directamente ligados ao núcleo do Evangelho,
alguns muito radicados no curso da história, que hoje já não são interpretados
da mesma maneira e cuja mensagem habitualmente não é percebida de modo
adequado. Podem até ser belos, mas agora não prestam o mesmo serviço à
transmissão do Evangelho. Não tenhamos medo de os rever! Da mesma forma, há
normas ou preceitos eclesiais que podem ter sido muito eficazes noutras épocas,
mas já não têm a mesma força educativa como canais de vida. São Tomás de Aquino
sublinhava que os preceitos dados por Cristo e pelos Apóstolos ao povo de Deus
«são pouquíssimos». E, citando Santo Agostinho, observava que os preceitos
adicionados posteriormente pela Igreja se devem exigir com moderação, «para não
tornar pesada a vida aos fiéis» nem transformar a nossa religião numa
escravidão, quando «a misericórdia de Deus quis que fosse livre». Esta
advertência, feita há vários séculos, tem uma actualidade tremenda. Deveria ser
um dos critérios a considerar, quando se pensa numa reforma da Igreja e da sua
pregação que permita realmente chegar a todos.
44. Aliás, tanto os Pastores como todos os fiéis que acompanham os seus
irmãos na fé ou num caminho de abertura a Deus não podem esquecer aquilo que
ensina, com muita clareza, o Catecismo da Igreja Católica: «A imputabilidade e
responsabilidade dum acto podem ser diminuídas, e até anuladas, pela
ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas
e outros factores psíquicos ou sociais».
Portanto, sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso
acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento
das pessoas, que se vão construindo dia após dia. Aos sacerdotes, lembro que o
confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia
do Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível. Um pequeno passo, no
meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a
vida externamente correcta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias
dificuldades. A todos deve chegar a consolação e o estímulo do amor salvífico
de Deus, que opera misteriosamente em cada pessoa, para além dos seus defeitos
e das suas quedas.
45. Vemos assim que o compromisso evangelizador se move por entre as
limitações da linguagem e das circunstâncias. Procura comunicar cada vez melhor
a verdade do Evangelho num contexto determinado, sem renunciar à verdade, ao
bem e à luz que pode dar quando a perfeição não é possível. Um coração
missionário está consciente destas limitações, fazendo-se «fraco com os fracos
(...) e tudo para todos» (1 Cor 9, 22). Nunca se fecha, nunca se refugia nas
próprias seguranças, nunca opta pela rigidez auto-defensiva. Sabe que ele mesmo
deve crescer na compreensão do Evangelho e no discernimento das sendas do
Espírito, e assim não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de
sujar-se com a lama da estrada.
5. Uma mãe de coração aberto
46. A Igreja «em saída» é uma Igreja com as portas abertas. Sair em
direcção aos outros para chegar às periferias humanas não significa correr pelo
mundo sem direcção nem sentido. Muitas vezes é melhor diminuir o ritmo, pôr de
parte a ansiedade para olhar nos olhos e escutar, ou renunciar às urgências
para acompanhar quem ficou caído à beira do caminho. Às vezes, é como o pai do
filho pródigo, que continua com as portas abertas para, quando este voltar,
poder entrar sem dificuldade.
47. A Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai. Um dos sinais
concretos desta abertura é ter, por todo o lado, igrejas com as portas abertas.
Assim, se alguém quiser seguir uma moção do Espírito e se aproximar à procura
de Deus, não esbarrará com a frieza duma porta fechada. Mas há outras portas
que também não se devem fechar: todos podem participar de alguma forma na vida
eclesial, todos podem fazer parte da comunidade, e nem sequer as portas dos
sacramentos se deveriam fechar por uma razão qualquer. Isto vale sobretudo
quando se trata daquele sacramento que é a «porta»: o Baptismo. A Eucaristia,
embora constitua a plenitude da vida sacramental, não é um prémio para os
perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos. Estas
convicções têm também consequências pastorais, que somos chamados a considerar
com prudência e audácia. Muitas vezes agimos como controladores da graça e não
como facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há
lugar para todos com a sua vida fadigosa.
48. Se a Igreja inteira assume este dinamismo missionário, há-de chegar
a todos, sem excepção. Mas, a quem deveria privilegiar? Quando se lê o
Evangelho, encontramos uma orientação muito clara: não tanto aos amigos e
vizinhos ricos, mas sobretudo aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas
vezes são desprezados e esquecidos, «àqueles que não têm com que te retribuir»
(Lc 14, 14). Não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem esta
mensagem claríssima. Hoje e sempre, «os pobres são os destinatários
privilegiados do Evangelho», e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é
sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um
vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais
sozinhos!
49. Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo!
Repito aqui, para toda a Igreja, aquilo que muitas vezes disse aos sacerdotes e
aos leigos de Buenos Aires: prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada
por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a
comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja
preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e
procedimentos. Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a
nossa consciência é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz
e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os
acolha, sem um horizonte de sentido e de vida. Mais do que o temor de falhar,
espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa
protecção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em
que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus
repete-nos sem cessar: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc 6, 37).
Capítulo II
NA CRISE DO COMPROMISSO COMUNITÁRIO
50. Antes de falar de algumas questões fundamentais relativas à acção
evangelizadora, convém recordar brevemente o contexto em que temos de viver e
agir. É habitual hoje falar-se dum «excesso de diagnóstico», que nem sempre é
acompanhado por propostas resolutivas e realmente aplicáveis. Por outro lado,
também não nos seria de grande proveito um olhar puramente sociológico, que
tivesse a pretensão, com a sua metodologia, de abraçar toda a realidade de
maneira supostamente neutra e asséptica. O que quero oferecer situa-se mais na
linha dum discernimento evangélico. É o olhar do discípulo missionário que «se
nutre da luz e da força do Espírito Santo».
51. Não é função do Papa oferecer uma análise detalhada e completa da
realidade contemporânea, mas animo todas as comunidades a «uma capacidade
sempre vigilante de estudar os sinais dos tempos». Trata-se duma
responsabilidade grave, pois algumas realidades hodiernas, se não encontrarem
boas soluções, podem desencadear processos de desumanização tais que será
difícil depois retroceder. É preciso esclarecer o que pode ser um fruto do
Reino e também o que atenta contra o projecto de Deus. Isto implica não só
reconhecer e interpretar as moções do espírito bom e do espírito mau, mas
também – e aqui está o ponto decisivo – escolher as do espírito bom e rejeitar
as do espírito mau. Pressuponho as várias análises que ofereceram os outros
documentos do Magistério universal, bem como as propostas pelos episcopados
regionais e nacionais. Nesta Exortação, pretendo debruçar-me, brevemente e numa
perspectiva pastoral, apenas sobre alguns aspectos da realidade que podem deter
ou enfraquecer os dinamismos de renovação missionária da Igreja, seja porque
afectam a vida e a dignidade do povo de Deus, seja porque incidem sobre os
sujeitos que mais directamente participam nas instituições eclesiais e nas
tarefas de evangelização.
1. Alguns desafios do mundo actual
52. A humanidade vive, neste momento, uma viragem histórica, que podemos
constatar nos progressos que se verificam em vários campos. São louváveis os
sucessos que contribuem para o bem-estar das pessoas, por exemplo, no âmbito da
saúde, da educação e da comunicação. Todavia não podemos esquecer que a maior
parte dos homens e mulheres do nosso tempo vive o seu dia a dia precariamente,
com funestas consequências. Aumentam algumas doenças. O medo e o desespero
apoderam-se do coração de inúmeras pessoas, mesmo nos chamados países ricos. A
alegria de viver frequentemente se desvanece; crescem a falta de respeito e a
violência, a desigualdade social torna-se cada vez mais patente. É preciso
lutar para viver, e muitas vezes viver com pouca dignidade. Esta mudança de
época foi causada pelos enormes saltos qualitativos, quantitativos, velozes e
acumulados que se verificam no progresso científico, nas inovações tecnológicas
e nas suas rápidas aplicações em diversos âmbitos da natureza e da vida.
Estamos na era do conhecimento e da informação, fonte de novas formas dum poder
muitas vezes anónimo.
Não a uma economia da exclusão
53. Assim como o mandamento «não matar» põe um limite claro para
assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer «não a uma
economia da exclusão e da desigualdade social». Esta economia mata. Não é
possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia,
enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode
tolerar mais o facto de se lançar comida no lixo, quando há pessoas que passam
fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e
da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. Em consequência
desta situação, grandes massas da população vêem-se excluídas e marginalizadas:
sem trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída. O ser humano é considerado,
em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora.
Assim teve início a cultura do «descartável», que aliás chega a ser promovida.
Já não se trata simplesmente do fenómeno de exploração e opressão, mas duma
realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à
sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder
já não está nela, mas fora. Os excluídos não são «explorados», mas resíduos,
«sobras».
54. Neste contexto, alguns defendem ainda as teorias da «recaída
favorável» que pressupõem que todo o crescimento económico, favorecido pelo
livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social
no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos factos, exprime uma confiança
vaga e ingénua na bondade daqueles que detêm o poder económico e nos mecanismos
sacralizados do sistema económico reinante. Entretanto, os excluídos continuam
a esperar. Para se poder apoiar um estilo de vida que exclui os outros ou mesmo
entusiasmar-se com este ideal egoísta, desenvolveu-se uma globalização da
indiferença. Quase sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer
ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do drama dos outros, nem
nos interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse uma responsabilidade de
outrem, que não nos incumbe. A cultura do bem-estar anestesia-nos, a ponto de
perdermos a serenidade se o mercado oferece algo que ainda não compramos,
enquanto todas estas vidas ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um
mero espectáculo que não nos incomoda de forma alguma.
Não à nova idolatria do dinheiro
55. Uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o
dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e as nossas
sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua
origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser
humano. Criámos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32,
1-35) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura
duma economia sem rosto e sem um objectivo verdadeiramente humano. A crise
mundial, que investe as finanças e a economia, põe a descoberto os seus
próprios desequilíbrios e sobretudo a grave carência duma orientação
antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o
consumo.
56. Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria
situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal
desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos
mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos
Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova
tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e
implacável, as suas leis e as suas regras. Além disso, a dívida e os
respectivos juros afastam os países das possibilidades viáveis da sua economia,
e os cidadãos do seu real poder de compra. A tudo isto vem juntar-se uma
corrupção ramificada e uma evasão fiscal egoísta, que assumiram dimensões
mundiais. A ambição do poder e do ter não conhece limites. Neste sistema que
tende a fagocitar tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja
frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado
divinizado, transformados em regra absoluta.
Não a um dinheiro que governa em vez de servir
57. Por detrás desta atitude, escondem-se a rejeição da ética e a recusa
de Deus. Para a ética, olha-se habitualmente com um certo desprezo sarcástico;
é considerada contraproducente, demasiado humana, porque relativiza o dinheiro
e o poder. É sentida como uma ameaça, porque condena a manipulação e degradação
da pessoa. Em última instância, a ética leva a Deus que espera uma resposta
comprometida que está fora das categorias do mercado. Para estas, se
absolutizadas, Deus é incontrolável, não manipulável e até mesmo perigoso, na
medida em que chama o ser humano à sua plena realização e à independência de
qualquer tipo de escravidão. A ética – uma ética não ideologizada – permite
criar um equilíbrio e uma ordem social mais humana. Neste sentido, animo os
peritos financeiros e os governantes dos vários países a considerarem as
palavras dum sábio da antiguidade: «Não fazer os pobres participar dos seus
próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida. Não são nossos, mas deles, os
bens que aferrolhamos».
58. Uma reforma financeira que tivesse em conta a ética exigiria uma
vigorosa mudança de atitudes por parte dos dirigentes políticos, a quem exorto
a enfrentar este desafio com determinação e clarividência, sem esquecer
naturalmente a especificidade de cada contexto. O dinheiro deve servir, e não
governar! O Papa ama a todos, ricos e pobres, mas tem a obrigação, em nome de
Cristo, de lembrar que os ricos devem ajudar os pobres, respeitá-los e
promovê-los. Exorto-vos a uma solidariedade desinteressada e a um regresso da
economia e das finanças a uma ética propícia ao ser humano.
Não à desigualdade social que gera violência
59. Hoje, em muitas partes, reclama-se maior segurança. Mas, enquanto
não se eliminar a exclusão e a desigualdade dentro da sociedade e entre os
vários povos será impossível desarreigar a violência. Acusam-se da violência os
pobres e as populações mais pobres, mas, sem igualdade de oportunidades, as
várias formas de agressão e de guerra encontrarão um terreno fértil que, mais
cedo ou mais tarde, há-de provocar a explosão. Quando a sociedade – local,
nacional ou mundial – abandona na periferia uma parte de si mesma, não há programas
políticos, nem forças da ordem ou serviços secretos que possam garantir
indefinidamente a tranquilidade. Isto não acontece apenas porque a desigualdade
social provoca a reacção violenta de quantos são excluídos do sistema, mas
porque o sistema social e económico é injusto na sua raiz. Assim como o bem
tende a difundir-se, assim também o mal consentido, que é a injustiça, tende a
expandir a sua força nociva e a minar, silenciosamente, as bases de qualquer
sistema político e social, por mais sólido que pareça. Se cada acção tem
consequências, um mal embrenhado nas estruturas duma sociedade sempre contém um
potencial de dissolução e de morte. É o mal cristalizado nas estruturas sociais
injustas, a partir do qual não podemos esperar um futuro melhor. Estamos longe
do chamado «fim da história», já que as condições dum desenvolvimento
sustentável e pacífico ainda não estão adequadamente implantadas e realizadas.
60. Os mecanismos da economia actual promovem uma exacerbação do
consumo, mas sabe-se que o consumismo desenfreado, aliado à desigualdade
social, é duplamente daninho para o tecido social. Assim, mais cedo ou mais
tarde, a desigualdade social gera uma violência que as corridas armamentistas
não resolvem nem poderão resolver jamais. Servem apenas para tentar enganar
aqueles que reclamam maior segurança, como se hoje não se soubesse que as armas
e a repressão violenta, mais do que dar solução, criam novos e piores
conflitos. Alguns comprazem-se simplesmente em culpar, dos próprios males, os
pobres e os países pobres, com generalizações indevidas, e pretendem encontrar
a solução numa «educação» que os tranquilize e transforme em seres domesticados
e inofensivos. Isto torna-se ainda mais irritante, quando os excluídos vêem
crescer este câncer social que é a corrupção profundamente radicada em muitos
países – nos seus Governos, empresários e instituições – seja qual for a
ideologia política dos governantes.
Alguns desafios culturais
61. Evangelizamos também procurando enfrentar os diferentes desafios que
se nos podem apresentar. Às vezes, estes manifestam-se em verdadeiros ataques à
liberdade religiosa ou em novas situações de perseguição aos cristãos, que,
nalguns países, atingiram níveis alarmantes de ódio e violência. Em muitos
lugares, trata-se mais de uma generalizada indiferença relativista, relacionada
com a desilusão e a crise das ideologias que se verificou como reacção a tudo o
que pareça totalitário. Isto não prejudica só a Igreja, mas a vida social em
geral. Reconhecemos que, numa cultura onde cada um pretende ser portador duma
verdade subjectiva própria, torna-se difícil que os cidadãos queiram inserir-se
num projecto comum que vai além dos benefícios e desejos pessoais.
62. Na cultura dominante, ocupa o primeiro lugar aquilo que é exterior,
imediato, visível, rápido, superficial, provisório. O real cede o lugar à
aparência. Em muitos países, a globalização comportou uma acelerada
deterioração das raízes culturais com a invasão de tendências pertencentes a
outras culturas, economicamente desenvolvidas mas eticamente debilitadas. Assim
se exprimiram, em distintos Sínodos, os Bispos de vários continentes. Há alguns
anos, os Bispos da África, por exemplo, retomando a Encíclica Sollicitudo rei
socialis, assinalaram que muitas vezes se quer transformar os países africanos
em meras «peças de um mecanismo, partes de uma engrenagem gigantesca. Isto
verifica-se com frequência também no domínio dos meios de comunicação social,
os quais, sendo na sua maior parte geridos por centros situados na parte norte
do mundo, nem sempre têm na devida conta as prioridades e os problemas próprios
desses países e não respeitam a sua fisionomia cultural». De igual modo, os
Bispos da Ásia sublinharam «as influências externas que estão a penetrar nas
culturas asiáticas. Vão surgindo formas novas de comportamento resultantes da
orientação dos mass-media (…). Em consequência disso, os aspectos negativos dos
mass-media e espectáculos estão a ameaçar os valores tradicionais».
63. A fé católica de muitos povos encontra-se hoje perante o desafio da
proliferação de novos movimentos religiosos, alguns tendentes ao
fundamentalismo e outros que parecem propor uma espiritualidade sem Deus. Isto,
por um lado, é o resultado duma reacção humana contra a sociedade materialista,
consumista e individualista e, por outro, um aproveitamento das carências da
população que vive nas periferias e zonas pobres, sobrevive no meio de grandes
preocupações humanas e procura soluções imediatas para as suas necessidades.
Estes movimentos religiosos, que se caracterizam pela sua penetração subtil,
vêm colmar, dentro do individualismo reinante, um vazio deixado pelo
racionalismo secularista. Além disso, é necessário reconhecer que, se uma parte
do nosso povo baptizado não sente a sua pertença à Igreja, isso deve-se também
à existência de estruturas com clima pouco acolhedor nalgumas das nossas
paróquias e comunidades, ou à atitude burocrática com que se dá resposta aos
problemas, simples ou complexos, da vida dos nossos povos. Em muitas partes,
predomina o aspecto administrativo sobre o pastoral, bem como uma
sacramentalização sem outras formas de evangelização.
64. O processo de secularização tende a reduzir a fé e a Igreja ao
âmbito privado e íntimo. Além disso, com a negação de toda a transcendência,
produziu-se uma crescente deformação ética, um enfraquecimento do sentido do
pecado pessoal e social e um aumento progressivo do relativismo; e tudo isso
provoca uma desorientação generalizada, especialmente na fase tão vulnerável às
mudanças da adolescência e juventude. Como justamente observam os Bispos dos
Estados Unidos da América, enquanto a Igreja insiste na existência de normas
morais objectivas, válidas para todos, «há aqueles que apresentam esta doutrina
como injusta, ou seja, contrária aos direitos humanos básicos. Tais alegações
brotam habitualmente de uma forma de relativismo moral, que se une
consistentemente a uma confiança nos direitos absolutos dos indivíduos. Nesta
perspectiva, a Igreja é sentida como se estivesse promovendo um
convencionalismo particular e interferisse com a liberdade individual». Vivemos
numa sociedade da informação que nos satura indiscriminadamente de dados, todos
postos ao mesmo nível, e acaba por nos conduzir a uma tremenda superficialidade
no momento de enquadrar as questões morais. Por conseguinte, torna-se
necessária uma educação que ensine a pensar criticamente e ofereça um caminho
de amadurecimento nos valores.
65. Apesar de toda a corrente secularista que invade a sociedade, em
muitos países – mesmo onde o cristianismo está em minoria – a Igreja Católica é
uma instituição credível perante a opinião pública, fiável no que diz respeito
ao âmbito da solidariedade e preocupação pelos mais indigentes. Em repetidas
ocasiões, ela serviu de medianeira na solução de problemas que afectam a paz, a
concórdia, o meio ambiente, a defesa da vida, os direitos humanos e civis, etc.
E como é grande a contribuição das escolas e das universidades católicas no
mundo inteiro! E é muito bom que assim seja. Mas, quando levantamos outras
questões que suscitam menor acolhimento público, custa-nos a demonstrar que o
fazemos por fidelidade às mesmas convicções sobre a dignidade da pessoa humana
e do bem comum.
66. A família atravessa uma crise cultural profunda, como todas as
comunidades e vínculos sociais. No caso da família, a fragilidade dos vínculos
reveste-se de especial gravidade, porque se trata da célula básica da
sociedade, o espaço onde se aprende a conviver na diferença e a pertencer aos
outros e onde os pais transmitem a fé aos seus filhos. O matrimónio tende a ser
visto como mera forma de gratificação afectiva, que se pode constituir de
qualquer maneira e modificar-se de acordo com a sensibilidade de cada um. Mas a
contribuição indispensável do matrimónio à sociedade supera o nível da
afectividade e o das necessidades ocasionais do casal. Como ensinam os Bispos
franceses, não provém «do sentimento amoroso, efémero por definição, mas da
profundidade do compromisso assumido pelos esposos que aceitam entrar numa
união de vida total».
67. O individualismo pós-moderno e globalizado favorece um estilo de
vida que debilita o desenvolvimento e a estabilidade dos vínculos entre as
pessoas e distorce os vínculos familiares. A acção pastoral deve mostrar ainda
melhor que a relação com o nosso Pai exige e incentiva uma comunhão que cura,
promove e fortalece os vínculos interpessoais. Enquanto no mundo, especialmente
nalguns países, se reacendem várias formas de guerras e conflitos, nós,
cristãos, insistimos na proposta de reconhecer o outro, de curar as feridas, de
construir pontes, de estreitar laços e de nos ajudarmos «a carregar as cargas
uns dos outros» (Gal 6, 2). Além disso, vemos hoje surgir muitas formas de
agregação para a defesa de direitos e a consecução de nobres objectivos. Deste
modo se manifesta uma sede de participação de numerosos cidadãos, que querem
ser construtores do desenvolvimento social e cultural.
Desafios da inculturação da fé
68. O substrato cristão dalguns povos – sobretudo ocidentais – é uma
realidade viva. Aqui encontramos, especialmente nos mais necessitados, uma
reserva moral que guarda valores de autêntico humanismo cristão. Um olhar de fé
sobre a realidade não pode deixar de reconhecer o que semeia o Espírito Santo.
Significaria não ter confiança na sua acção livre e generosa pensar que não
existem autênticos valores cristãos, onde uma grande parte da população recebeu
o Baptismo e exprime de variadas maneiras a sua fé e solidariedade fraterna.
Aqui há que reconhecer muito mais que «sementes do Verbo», visto que se trata
duma autêntica fé católica com modalidades próprias de expressão e de pertença
à Igreja. Não convém ignorar a enorme importância que tem uma cultura marcada
pela fé, porque, não obstante os seus limites, esta cultura evangelizada tem,
contra os ataques do secularismo actual, muitos mais recursos do que a mera
soma dos crentes. Uma cultura popular evangelizada contém valores de fé e
solidariedade que podem provocar o desenvolvimento duma sociedade mais justa e
crente, e possui uma sabedoria peculiar que devemos saber reconhecer com olhar
agradecido.
69. Há uma necessidade imperiosa de evangelizar as culturas para
inculturar o Evangelho. Nos países de tradição católica, tratar-se-á de
acompanhar, cuidar e fortalecer a riqueza que já existe e, nos países de outras
tradições religiosas ou profundamente secularizados, há que procurar novos
processos de evangelização da cultura, ainda que suponham projectos a longo
prazo. Entretanto não podemos ignorar que há sempre uma chamada ao crescimento:
toda a cultura e todo o grupo social necessitam de purificação e
amadurecimento. No caso das culturas populares de povos católicos, podemos
reconhecer algumas fragilidades que precisam ainda de ser curadas pelo Evangelho:
o machismo, o alcoolismo, a violência doméstica, uma escassa participação na
Eucaristia, crenças fatalistas ou supersticiosas que levam a recorrer à
bruxaria, etc. Mas o melhor ponto de partida para curar e ver-se livre de tais
fragilidades é precisamente a piedade popular.
70. Certo é também que, às vezes, se dá maior realce a formas exteriores
das tradições de grupos concretos ou a supostas revelações privadas, que se
absolutizam, do que ao impulso da piedade cristã. Há certo cristianismo feito
de devoções – próprio duma vivência individual e sentimental da fé – que, na
realidade, não corresponde a uma autêntica «piedade popular». Alguns promovem
estas expressões sem se preocupar com a promoção social e a formação dos fiéis,
fazendo-o nalguns casos para obter benefícios económicos ou algum poder sobre
os outros. Também não podemos ignorar que, nas últimas décadas, se produziu uma
ruptura na transmissão geracional da fé cristã no povo católico. É inegável que
muitos se sentem desiludidos e deixam de se identificar com a tradição
católica, que cresceu o número de pais que não baptizam os seus filhos nem os
ensinam a rezar, e que há um certo êxodo para outras comunidades de fé. Algumas
causas desta ruptura são a falta de espaços de diálogo familiar, a influência
dos meios de comunicação, o subjectivismo relativista, o consumismo desenfreado
que o mercado incentiva, a falta de cuidado pastoral pelos mais pobres, a
inexistência dum acolhimento cordial nas nossas instituições, e a dificuldade
que sentimos em recriar a adesão mística da fé num cenário religioso
pluralista.
Desafios das culturas urbanas
71. A nova Jerusalém, a cidade santa (cf. Ap 21, 2-4), é a meta para
onde peregrina toda a humanidade. É interessante que a revelação nos diga que a
plenitude da humanidade e da história se realiza numa cidade. Precisamos de
identificar a cidade a partir dum olhar contemplativo, isto é, um olhar de fé
que descubra Deus que habita nas suas casas, nas suas ruas, nas suas praças. A
presença de Deus acompanha a busca sincera que indivíduos e grupos efectuam
para encontrar apoio e sentido para a sua vida. Ele vive entre os citadinos
promovendo a solidariedade, a fraternidade, o desejo de bem, de verdade, de
justiça. Esta presença não precisa de ser criada, mas descoberta, desvendada.
Deus não Se esconde de quantos O buscam com coração sincero, ainda que o façam
tacteando, de maneira imprecisa e incerta.
72. Na cidade, o elemento religioso é mediado por diferentes estilos de
vida, por costumes ligados a um sentido do tempo, do território e das relações
que difere do estilo das populações rurais. Na vida quotidiana, muitas vezes os
citadinos lutam para sobreviver e, nesta luta, esconde-se um sentido profundo
da existência que habitualmente comporta também um profundo sentido religioso.
Precisamos de o contemplar para conseguirmos um diálogo parecido com o que o
Senhor teve com a Samaritana, junto do poço onde ela procurava saciar a sua
sede (cf. Jo 4, 7-26).
73. Novas culturas continuam a formar-se nestas enormes geografias
humanas onde o cristão já não costuma ser promotor ou gerador de sentido, mas
recebe delas outras linguagens, símbolos, mensagens e paradigmas que oferecem
novas orientações de vida, muitas vezes em contraste com o Evangelho de Jesus.
Uma cultura inédita palpita e está em elaboração na cidade. O Sínodo constatou
que as transformações destas grandes áreas e a cultura que exprimem são, hoje,
um lugar privilegiado da nova evangelização. Isto requer imaginar espaços de
oração e de comunhão com características inovadoras, mais atraentes e
significativas para as populações urbanas. Os ambientes rurais, devido à
influência dos mass-media, não estão imunes destas transformações culturais que
também operam mudanças significativas nas suas formas de vida.
74. Torna-se necessária uma evangelização que ilumine os novos modos de
se relacionar com Deus, com os outros e com o ambiente, e que suscite os
valores fundamentais. É necessário chegar aonde são concebidas as novas
histórias e paradigmas, alcançar com a Palavra de Jesus os núcleos mais
profundos da alma das cidades. Não se deve esquecer que a cidade é um âmbito
multicultural. Nas grandes cidades, pode observar-se uma trama em que grupos de
pessoas compartilham as mesmas formas de sonhar a vida e ilusões semelhantes,
constituindo-se em novos sectores humanos, em territórios culturais, em cidades
invisíveis. Na realidade, convivem variadas formas culturais, mas exercem
muitas vezes práticas de segregação e violência. A Igreja é chamada a ser
servidora dum diálogo difícil. Enquanto há citadinos que conseguem os meios
adequados para o desenvolvimento da vida pessoal e familiar, muitíssimos são
também os «não-citadinos», os «meio-citadinos» ou os «resíduos urbanos». A
cidade dá origem a uma espécie de ambivalência permanente, porque, ao mesmo
tempo que oferece aos seus habitantes infinitas possibilidades, interpõe também
numerosas dificuldades ao pleno desenvolvimento da vida de muitos. Esta
contradição provoca sofrimentos lancinantes. Em muitas partes do mundo, as cidades
são cenário de protestos em massa, onde milhares de habitantes reclamam
liberdade, participação, justiça e várias reivindicações que, se não forem
adequadamente interpretadas, nem pela força poderão ser silenciadas.
75. Não podemos ignorar que, nas cidades, facilmente se desenvolve o
tráfico de drogas e de pessoas, o abuso e a exploração de menores, o abandono
de idosos e doentes, várias formas de corrupção e crime. Ao mesmo tempo, o que
poderia ser um precioso espaço de encontro e solidariedade, transforma-se
muitas vezes num lugar de retraimento e desconfiança mútua. As casas e os
bairros constroem-se mais para isolar e proteger do que para unir e integrar. A
proclamação do Evangelho será uma base para restabelecer a dignidade da vida
humana nestes contextos, porque Jesus quer derramar nas cidades vida em
abundância (cf. Jo 10, 10). O sentido unitário e completo da vida humana
proposto pelo Evangelho é o melhor remédio para os males urbanos, embora
devamos reparar que um programa e um estilo uniformes e rígidos de
evangelização não são adequados para esta realidade. Mas viver a fundo a
realidade humana e inserir-se no coração dos desafios como fermento de
testemunho, em qualquer cultura, em qualquer cidade, melhora o cristão e
fecunda a cidade.
2. Tentações dos agentes pastorais
76. Sinto uma enorme gratidão pela tarefa de quantos trabalham na
Igreja. Não quero agora deter-me na exposição das actividades dos vários
agentes pastorais, desde os Bispos até ao mais simples e ignorado dos serviços
eclesiais. Prefiro reflectir sobre os desafios que todos eles enfrentam no meio
da cultura globalizada actual. Mas, antes de tudo e como dever de justiça,
tenho a dizer que é enorme a contribuição da Igreja no mundo actual. A nossa
tristeza e vergonha pelos pecados de alguns membros da Igreja, e pelos
próprios, não devem fazer esquecer os inúmeros cristãos que dão a vida por
amor: ajudam tantas pessoas seja a curar-se seja a morrer em paz em hospitais
precários, acompanham as pessoas que caíram escravas de diversos vícios nos
lugares mais pobres da terra, prodigalizam-se na educação de crianças e jovens,
cuidam de idosos abandonados por todos, procuram comunicar valores em ambientes
hostis, e dedicam-se de muitas outras maneiras que mostram o imenso amor à
humanidade inspirado por Deus feito homem. Agradeço o belo exemplo que me dão
tantos cristãos que oferecem a sua vida e o seu tempo com alegria. Este
testemunho faz-me muito bem e me apoia na minha aspiração pessoal de superar o
egoísmo para uma dedicação maior.
77. Apesar disso, como filhos desta época, todos estamos de algum modo
sob o influxo da cultura globalizada actual, que, sem deixar de apresentar
valores e novas possibilidades, pode também limitar-nos, condicionar-nos e até
mesmo combalir-nos. Reconheço que precisamos de criar espaços apropriados para
motivar e sanar os agentes pastorais, «lugares onde regenerar a sua fé em Jesus
crucificado e ressuscitado, onde compartilhar as próprias questões mais
profundas e as preocupações quotidianas, onde discernir em profundidade e com
critérios evangélicos sobre a própria existência e experiência, com o objectivo
de orientar para o bem e a beleza as próprias opções individuais e sociais». Ao
mesmo tempo, quero chamar a atenção para algumas tentações que afectam, particularmente
nos nossos dias, os agentes pastorais.
Sim ao desafio duma espiritualidade missionária
78. Hoje nota-se em muitos agentes pastorais, mesmo pessoas consagradas,
uma preocupação exacerbada pelos espaços pessoais de autonomia e relaxamento,
que leva a viver os próprios deveres como mero apêndice da vida, como se não
fizessem parte da própria identidade. Ao mesmo tempo, a vida espiritual
confunde-se com alguns momentos religiosos que proporcionam algum alívio, mas
não alimentam o encontro com os outros, o compromisso no mundo, a paixão pela
evangelização. Assim, é possível notar em muitos agentes evangelizadores – não
obstante rezem – uma acentuação do individualismo, uma crise de identidade e um
declínio do fervor. São três males que se alimentam entre si.
79. A cultura mediática e alguns ambientes intelectuais transmitem, às
vezes, uma acentuada desconfiança quanto à mensagem da Igreja, e um certo
desencanto. Em consequência disso, embora rezando, muitos agentes pastorais
desenvolvem uma espécie de complexo de inferioridade que os leva a relativizar
ou esconder a sua identidade cristã e as suas convicções. Gera-se então um
círculo vicioso, porque assim não se sentem felizes com o que são nem com o que
fazem, não se sentem identificados com a missão evangelizadora, e isto debilita
a entrega. Acabam assim por sufocar a alegria da missão numa espécie de
obsessão por serem como todos os outros e terem o que possuem os demais. Deste
modo, a tarefa da evangelização torna-se forçada e dedica-se-lhe pouco esforço
e um tempo muito limitado.
80. Nos agentes pastorais, independentemente do estilo espiritual ou da
linha de pensamento que possam ter, desenvolve-se um relativismo ainda mais
perigoso que o doutrinal. Tem a ver com as opções mais profundas e sinceras que
determinam uma forma de vida concreta. Este relativismo prático é agir como se
Deus não existisse, decidir como se os pobres não existissem, sonhar como se os
outros não existissem, trabalhar como se aqueles que não receberam o anúncio
não existissem. É impressionante como até aqueles que aparentemente dispõem de
sólidas convicções doutrinais e espirituais acabam, muitas vezes, por cair num
estilo de vida que os leva a agarrarem-se a seguranças económicas ou a espaços
de poder e de glória humana que se buscam por qualquer meio, em vez de dar a
vida pelos outros na missão. Não nos deixemos roubar o entusiasmo missionário!
Não à acédia egoísta
81. Quando mais precisamos dum dinamismo missionário que leve sal e luz
ao mundo, muitos leigos temem que alguém os convide a realizar alguma tarefa
apostólica e procuram fugir de qualquer compromisso que lhes possa roubar o
tempo livre. Hoje, por exemplo, tornou-se muito difícil nas paróquias conseguir
catequistas que estejam preparados e perseverem no seu dever por vários anos.
Mas algo parecido acontece com os sacerdotes que se preocupam obsessivamente
com o seu tempo pessoal. Isto, muitas vezes, fica-se a dever a que as pessoas
sentem imperiosamente necessidade de preservar os seus espaços de autonomia,
como se uma tarefa de evangelização fosse um veneno perigoso e não uma resposta
alegre ao amor de Deus que nos convoca para a missão e nos torna completos e
fecundos. Alguns resistem a provar até ao fundo o gosto da missão e acabam
mergulhados numa acédia paralisadora.
82. O problema não está sempre no excesso de actividades, mas sobretudo
nas actividades mal vividas, sem as motivações adequadas, sem uma
espiritualidade que impregne a acção e a torne desejável. Daí que as obrigações
cansem mais do que é razoável, e às vezes façam adoecer. Não se trata duma
fadiga feliz, mas tensa, gravosa, desagradável e, em definitivo, não assumida.
Esta acédia pastoral pode ter origens diversas: alguns caem nela por
sustentarem projectos irrealizáveis e não viverem de bom grado o que poderiam
razoavelmente fazer; outros, por não aceitarem a custosa evolução dos processos
e querem que tudo caia do Céu; outros, por se apegarem a alguns projectos ou a
sonhos de sucesso cultivados pela sua vaidade; outros, por terem perdido o
contacto real com o povo, numa despersonalização da pastoral que leva a prestar
mais atenção à organização do que às pessoas, acabando assim por se
entusiasmarem mais com a «tabela de marcha» do que com a própria marcha; outros
ainda caem na acédia, por não saberem esperar e quererem dominar o ritmo da
vida. A ânsia hodierna de chegar a resultados imediatos faz com que os agentes
pastorais não tolerem facilmente tudo o que signifique alguma contradição, um
aparente fracasso, uma crítica, uma cruz.
83. Assim se gera a maior ameaça, que «é o pragmatismo cinzento da vida
quotidiana da Igreja, no qual aparentemente tudo procede dentro da normalidade,
mas na realidade a fé vai-se deteriorando e degenerando na mesquinhez».
Desenvolve-se a psicologia do túmulo, que pouco a pouco transforma os cristãos
em múmias de museu. Desiludidos com a realidade, com a Igreja ou consigo
mesmos, vivem constantemente tentados a apegar-se a uma tristeza melosa, sem
esperança, que se apodera do coração como «o mais precioso elixir do demónio».
Chamados para iluminar e comunicar vida, acabam por se deixar cativar por
coisas que só geram escuridão e cansaço interior e corroem o dinamismo
apostólico. Por tudo isto, permiti que insista: Não deixemos que nos roubem a
alegria da evangelização!
Não ao pessimismo estéril
84. A alegria do Evangelho é tal que nada e ninguém no-la poderá tirar
(cf. Jo 16, 22). Os males do nosso mundo – e os da Igreja – não deveriam servir
como desculpa para reduzir a nossa entrega e o nosso ardor. Vejamo-los como
desafios para crescer. Além disso, o olhar crente é capaz de reconhecer a luz
que o Espírito Santo sempre irradia no meio da escuridão, sem esquecer que,
«onde abundou o pecado, superabundou a graça» (Rm 5, 20). A nossa fé é
desafiada a entrever o vinho em que a água pode ser transformada, e a descobrir
o trigo que cresce no meio do joio. Cinquenta anos depois do Concílio Vaticano
II, apesar de nos entristecerem as misérias do nosso tempo e estarmos longe de
optimismos ingénuos, um maior realismo não deve significar menor confiança no
Espírito nem menor generosidade. Neste sentido, podemos voltar a ouvir as
palavras pronunciadas pelo Beato João XXIII naquele memorável 11 de Outubro de
1962: «Chegam-nos aos ouvidos insinuações de almas, ardorosas sem dúvida no
zelo, mas não dotadas de grande sentido de discrição e moderação. Nos tempos
actuais, não vêem senão prevaricações e ruínas. [...] Mas a nós parece-nos que
devemos discordar desses profetas de desgraças, que anunciam acontecimentos
sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo. Na ordem presente
das coisas, a misericordiosa Providência está-nos levantando para uma ordem de
relações humanas que, por obra dos homens e a maior parte das vezes para além
do que eles esperam, se encaminham para o cumprimento dos seus desígnios
superiores e inesperados, e tudo, mesmo as adversidades humanas, converge para
o bem da Igreja».
85. Uma das tentações mais sérias que sufoca o fervor e a ousadia é a
sensação de derrota que nos transforma em pessimistas lamurientos e
desencantados com cara de vinagre. Ninguém pode empreender uma luta, se de
antemão não está plenamente confiado no triunfo. Quem começa sem confiança,
perdeu de antemão metade da batalha e enterra os seus talentos. Embora com a
dolorosa consciência das próprias fraquezas, há que seguir em frente, sem se
dar por vencido, e recordar o que disse o Senhor a São Paulo: «Basta-te a minha
graça, porque a força manifesta-se na fraqueza» (2 Cor 12, 9). O triunfo
cristão é sempre uma cruz, mas cruz que é, simultaneamente, estandarte de
vitória, que se empunha com ternura batalhadora contra as investidas do mal. O
mau espírito da derrota é irmão da tentação de separar prematuramente o trigo
do joio, resultado de uma desconfiança ansiosa e egocêntrica.
86. É verdade que, nalguns lugares, se produziu uma «desertificação»
espiritual, fruto do projecto de sociedades que querem construir sem Deus ou
que destroem as suas raízes cristãs. Lá, «o mundo cristão está a tornar-se
estéril e se esgota como uma terra excessivamente desfrutada que se transforma
em poeira». Noutros países, a resistência violenta ao cristianismo obriga os
cristãos a viverem a sua fé às escondidas no país que amam. Esta é outra forma
muito triste de deserto. E a própria família ou o lugar de trabalho podem ser
também o tal ambiente árido, onde há que conservar a fé e procurar irradiá-la.
Mas «é precisamente a partir da experiência deste deserto, deste vazio, que
podemos redescobrir a alegria de crer, a sua importância vital para nós, homens
e mulheres. No deserto, é possível redescobrir o valor daquilo que é essencial
para a vida; assim sendo, no mundo de hoje, há inúmeros sinais da sede de Deus,
do sentido último da vida, ainda que muitas vezes expressos implícita ou
negativamente. E, no deserto, existe sobretudo a necessidade de pessoas de fé
que, com suas próprias vidas, indiquem o caminho para a Terra Prometida,
mantendo assim viva a esperança». Em todo o caso, lá somos chamados a ser
pessoas-cântaro para dar de beber aos outros. Às vezes o cântaro transforma-se
numa pesada cruz, mas foi precisamente na Cruz que o Senhor, trespassado, Se
nos entregou como fonte de água viva. Não deixemos que nos roubem a esperança!
Sim às relações novas geradas por Jesus Cristo
87. Neste tempo em que as redes e demais instrumentos da comunicação
humana alcançaram progressos inauditos, sentimos o desafio de descobrir e
transmitir a «mística» de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos, dar o
braço, apoiar-nos, participar nesta maré um pouco caótica que pode
transformar-se numa verdadeira experiência de fraternidade, numa caravana
solidária, numa peregrinação sagrada. Assim, as maiores possibilidades de
comunicação traduzir-se-ão em novas oportunidades de encontro e solidariedade
entre todos. Como seria bom, salutar, libertador, esperançoso, se pudéssemos
trilhar este caminho! Sair de si mesmo para se unir aos outros faz bem.
Fechar-se em si mesmo é provar o veneno amargo da imanência, e a humanidade
perderá com cada opção egoísta que fizermos.
88. O ideal cristão convidará sempre a superar a suspeita, a
desconfiança permanente, o medo de sermos invadidos, as atitudes defensivas que
nos impõe o mundo actual. Muitos tentam escapar dos outros fechando-se na sua
privacidade confortável ou no círculo reduzido dos mais íntimos, e renunciam ao
realismo da dimensão social do Evangelho. Porque, assim como alguns quiseram um
Cristo puramente espiritual, sem carne nem cruz, também se pretendem relações
interpessoais mediadas apenas por sofisticados aparatos, por ecrãs e sistemas
que se podem acender e apagar à vontade. Entretanto o Evangelho convida-nos
sempre a abraçar o risco do encontro com o rosto do outro, com a sua presença
física que interpela, com o seu sofrimentos e suas reivindicações, com a sua
alegria contagiosa permanecendo lado a lado. A verdadeira fé no Filho de Deus
feito carne é inseparável do dom de si mesmo, da pertença à comunidade, do
serviço, da reconciliação com a carne dos outros. Na sua encarnação, o Filho de
Deus convidou-nos à revolução da ternura.
89. O isolamento, que é uma concretização do imanentismo, pode
exprimir-se numa falsa autonomia que exclui Deus, mas pode também encontrar na
religião uma forma de consumismo espiritual à medida do próprio individualismo
doentio. O regresso ao sagrado e a busca espiritual, que caracterizam a nossa
época. são fenómenos ambíguos. Mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos
apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que
não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem
carne e sem compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma
espiritualidade que os cure, liberte, encha de vida e de paz, ao mesmo tempo
que os chame à comunhão solidária e à fecundidade missionária, acabarão
enganados por propostas que não humanizam nem dão glória a Deus.
90. As formas próprias da religiosidade popular são encarnadas, porque
brotaram da encarnação da fé cristã numa cultura popular. Por isso mesmo,
incluem uma relação pessoal, não com energias harmonizadoras, mas com Deus,
Jesus Cristo, Maria, um Santo. Têm carne, têm rostos. Estão aptas para
alimentar potencialidades relacionais e não tanto fugas individualistas.
Noutros sectores da nossa sociedade, cresce o apreço por várias formas de
«espiritualidade do bem-estar» sem comunidade, por uma «teologia da
prosperidade» sem compromissos fraternos ou por experiências subjectivas sem
rostos, que se reduzem a uma busca interior imanentista.
91. Um desafio importante é mostrar que a solução nunca consistirá em escapar
de uma relação pessoal e comprometida com Deus, que ao mesmo tempo nos
comprometa com os outros. Isto é o que se verifica hoje quando os crentes
procuram esconder-se e livrar-se dos outros, e quando subtilmente escapam de um
lugar para outro ou de uma tarefa para outra, sem criar vínculos profundos e
estáveis: «A imaginação e mudança de lugares enganou a muitos». É um remédio
falso que faz adoecer o coração e, às vezes, o corpo. Faz falta ajudar a
reconhecer que o único caminho é aprender a encontrar os demais com a atitude
adequada, que é valorizá-los e aceitá-los como companheiros de estrada, sem
resistências interiores. Melhor ainda, trata-se de aprender a descobrir Jesus
no rosto dos outros, na sua voz, nas suas reivindicações; e aprender também a sofrer,
num abraço com Jesus crucificado, quando recebemos agressões injustas ou
ingratidões, sem nos cansarmos jamais de optar pela fraternidade.
92. Nisto está a verdadeira cura: de facto, o modo de nos relacionarmos
com os outros que, em vez de nos adoecer, nos cura é uma fraternidade mística,
contemplativa, que sabe ver a grandeza sagrada do próximo, que sabe descobrir
Deus em cada ser humano, que sabe tolerar as moléstias da convivência
agarrando-se ao amor de Deus, que sabe abrir o coração ao amor divino para
procurar a felicidade dos outros como a procura o seu Pai bom. Precisamente
nesta época, inclusive onde são um «pequenino rebanho» (Lc 12, 32), os
discípulos do Senhor são chamados a viver como comunidade que seja sal da terra
e luz do mundo (cf. Mt 5, 13-16). São chamados a testemunhar, de forma sempre
nova, uma pertença evangelizadora. Não deixemos que nos roubem a comunidade!
Não ao mundanismo espiritual
93. O mundanismo espiritual, que se esconde por detrás de aparências de
religiosidade e até mesmo de amor à Igreja, é buscar, em vez da glória do
Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal. É aquilo que o Senhor censurava
aos fariseus: «Como vos é possível acreditar, se andais à procura da glória uns
dos outros, e não procurais a glória que vem do Deus único?» (Jo 5, 44). É uma
maneira subtil de procurar «os próprios interesses, não os interesses de Jesus
Cristo» (Fl 2, 21). Reveste-se de muitas formas, de acordo com o tipo de
pessoas e situações em que penetra. Por cultivar o cuidado da aparência, nem
sempre suscita pecados de domínio público, pelo que externamente tudo parece
correcto. Mas, se invadisse a Igreja, «seria infinitamente mais desastroso do
que qualquer outro mundanismo meramente moral».
94. Este mundanismo pode alimentar-se sobretudo de duas maneiras
profundamente relacionadas. Uma delas é o fascínio do gnosticismo, uma fé
fechada no subjectivismo, onde apenas interessa uma determinada experiência ou
uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente confortam e iluminam,
mas, em última instância, a pessoa fica enclausurada na imanência da sua
própria razão ou dos seus sentimentos. A outra maneira é o neopelagianismo
auto-referencial e prometeuco de quem, no fundo, só confia nas suas próprias
forças e se sente superior aos outros por cumprir determinadas normas ou por
ser irredutivelmente fiel a um certo estilo católico próprio do passado. É uma
suposta segurança doutrinal ou disciplinar que dá lugar a um elitismo
narcisista e autoritário, onde, em vez de evangelizar, se analisam e
classificam os demais e, em vez de facilitar o acesso à graça, consomem-se as
energias a controlar. Em ambos os casos, nem Jesus Cristo nem os outros
interessam verdadeiramente. São manifestações dum imanentismo antropocêntrico.
Não é possível imaginar que, destas formas desvirtuadas do cristianismo, possa
brotar um autêntico dinamismo evangelizador.
95. Este obscuro mundanismo manifesta-se em muitas atitudes,
aparentemente opostas mas com a mesma pretensão de «dominar o espaço da
Igreja». Nalguns, há um cuidado exibicionista da liturgia, da doutrina e do
prestígio da Igreja, mas não se preocupam que o Evangelho adquira uma real
inserção no povo fiel de Deus e nas necessidades concretas da história. Assim,
a vida da Igreja transforma-se numa peça de museu ou numa possessão de poucos.
Noutros, o próprio mundanismo espiritual esconde-se por detrás do fascínio de
poder mostrar conquistas sociais e políticas, ou numa vanglória ligada à gestão
de assuntos práticos, ou numa atracção pelas dinâmicas de auto-estima e de
realização autoreferencial. Também se pode traduzir em várias formas de se
apresentar a si mesmo envolvido numa densa vida social cheia de viagens,
reuniões, jantares, recepções. Ou então desdobra-se num funcionalismo
empresarial, carregado de estatísticas, planificações e avaliações, onde o
principal beneficiário não é o povo de Deus mas a Igreja como organização. Em
qualquer um dos casos, não traz o selo de Cristo encarnado, crucificado e
ressuscitado, encerra-se em grupos de elite, não sai realmente à procura dos
que andam perdidos nem das imensas multidões sedentas de Cristo. Já não há
ardor evangélico, mas o gozo espúrio duma autocomplacência egocêntrica.
96. Neste contexto, alimenta-se a vanglória de quantos se contentam com
ter algum poder e preferem ser generais de exércitos derrotados antes que
simples soldados dum batalhão que continua a lutar. Quantas vezes sonhamos
planos apostólicos expansionistas, meticulosos e bem traçados, típicos de
generais derrotados! Assim negamos a nossa história de Igreja, que é gloriosa
por ser história de sacrifícios, de esperança, de luta diária, de vida gasta no
serviço, de constância no trabalho fadigoso, porque todo o trabalho é «suor do
nosso rosto». Em vez disso, entretemo-nos vaidosos a falar sobre «o que se
deveria fazer» – o pecado do «deveriaqueísmo» – como mestres espirituais e
peritos de pastoral que dão instruções ficando de fora. Cultivamos a nossa
imaginação sem limites e perdemos o contacto com a dolorosa realidade do nosso
povo fiel.
97. Quem caiu neste mundanismo olha de cima e de longe, rejeita a
profecia dos irmãos, desqualifica quem o questiona, faz ressaltar
constantemente os erros alheios e vive obcecado pela aparência. Circunscreveu
os pontos de referência do coração ao horizonte fechado da sua imanência e dos
seus interesses e, consequentemente, não aprende com os seus pecados nem está
verdadeiramente aberto ao perdão. É uma tremenda corrupção, com aparências de
bem. Devemos evitá-lo, pondo a Igreja em movimento de saída de si mesma, de missão
centrada em Jesus Cristo, de entrega aos pobres. Deus nos livre de uma Igreja
mundana sob vestes espirituais ou pastorais! Este mundanismo asfixiante cura-se
saboreando o ar puro do Espírito Santo, que nos liberta de estarmos centrados
em nós mesmos, escondidos numa aparência religiosa vazia de Deus. Não deixemos
que nos roubem o Evangelho!
Não à guerra entre nós
98. Dentro do povo de Deus e nas diferentes comunidades, quantas
guerras! No bairro, no local de trabalho, quantas guerras por invejas e ciúmes,
mesmo entre cristãos! O mundanismo espiritual leva alguns cristãos a estar em
guerra com outros cristãos que se interpõem na sua busca pelo poder, prestígio,
prazer ou segurança económica. Além disso, alguns deixam de viver uma adesão
cordial à Igreja por alimentar um espírito de contenda. Mais do que pertencer à
Igreja inteira, com a sua rica diversidade, pertencem a este ou àquele grupo
que se sente diferente ou especial.
99. O mundo está dilacerado pelas guerras e a violência, ou ferido por
um generalizado individualismo que divide os seres humanos e põe-nos uns contra
os outros visando o próprio bem-estar. Em vários países, ressurgem conflitos e
antigas divisões que se pensavam em parte superados. Aos cristãos de todas as
comunidades do mundo, quero pedir-lhes de modo especial um testemunho de
comunhão fraterna, que se torne fascinante e resplandecente. Que todos possam
admirar como vos preocupais uns pelos outros, como mutuamente vos encorajais
animais e ajudais: «Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos:
se vos amardes uns aos outros» (Jo 13, 35). Foi o que Jesus, com uma intensa
oração, Jesus pediu ao Pai: «Que todos sejam um só (…) em nós [para que] o
mundo creia» (Jo 17, 21). Cuidado com a tentação da inveja! Estamos no mesmo barco
e vamos para o mesmo porto! Peçamos a graça de nos alegrarmos com os frutos
alheios, que são de todos.
100. Para quantos estão feridos por antigas divisões, resulta difícil
aceitar que os exortemos ao perdão e à reconciliação, porque pensam que
ignoramos a sua dor ou pretendemos fazer-lhes perder a memória e os ideais.
Mas, se virem o testemunho de comunidades autenticamente fraternas e
reconciliadas, isso é sempre uma luz que atrai. Por isso me dói muito comprovar
como nalgumas comunidades cristãs, e mesmo entre pessoas consagradas, se dá
espaço a várias formas de ódio, divisão, calúnia, difamação, vingança, ciúme, a
desejos de impor as próprias ideias a todo o custo, e até perseguições que
parecem uma implacável caça às bruxas. Quem queremos evangelizar com estes
comportamentos?
101. Peçamos ao Senhor que nos faça compreender a lei do amor. Que bom é
termos esta lei! Como nos faz bem, apesar de tudo amar-nos uns aos outros! Sim,
apesar de tudo! A cada um de nós é dirigida a exortação de Paulo: «Não te deixes
vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem» (Rm 12, 21). E ainda: «Não nos
cansemos de fazer o bem» (Gal 6, 9). Todos nós provamos simpatias e antipatias,
e talvez neste momento estejamos chateados com alguém. Pelo menos digamos ao
Senhor: «Senhor, estou chateado com este, com aquela. Peço-Vos por ele e por
ela». Rezar pela pessoa com quem estamos irritados é um belo passo rumo ao
amor, e é um acto de evangelização. Façamo-lo hoje mesmo. Não deixemos que nos
roubem o ideal do amor fraterno!
Outros desafios eclesiais
102. A imensa maioria do povo de Deus é constituída por leigos. Ao seu
serviço, está uma minoria: os ministros ordenados. Cresceu a consciência da
identidade e da missão dos leigos na Igreja. Embora não suficiente, pode-se
contar com um numeroso laicado, dotado de um arreigado sentido de comunidade e
uma grande fidelidade ao compromisso da caridade, da catequese, da celebração
da fé. Mas, a tomada de consciência desta responsabilidade laical que nasce do
Baptismo e da Confirmação não se manifesta de igual modo em toda a parte;
nalguns casos, porque não se formaram para assumir responsabilidades
importantes, noutros por não encontrar espaço nas suas Igrejas particulares
para poderem exprimir-se e agir por causa dum excessivo clericalismo que os mantém
à margem das decisões. Apesar de se notar uma maior participação de muitos nos
ministérios laicais, este compromisso não se reflecte na penetração dos valores
cristãos no mundo social, político e económico; limita-se muitas vezes às
tarefas no seio da Igreja, sem um empenhamento real pela aplicação do Evangelho
na transformação da sociedade. A formação dos leigos e a evangelização das
categorias profissionais e intelectuais constituem um importante desafio
pastoral.
103. A Igreja reconhece a indispensável contribuição da mulher na
sociedade, com uma sensibilidade, uma intuição e certas capacidades peculiares,
que habitualmente são mais próprias das mulheres que dos homens. Por exemplo, a
especial solicitude feminina pelos outros, que se exprime de modo particular,
mas não exclusivamente, na maternidade. Vejo, com prazer, como muitas mulheres
partilham responsabilidades pastorais juntamente com os sacerdotes, contribuem
para o acompanhamento de pessoas, famílias ou grupos e prestam novas
contribuições para a reflexão teológica. Mas ainda é preciso ampliar os espaços
para uma presença feminina mais incisiva na Igreja. Porque «o génio feminino é
necessário em todas as expressões da vida social; por isso deve ser garantida a
presença das mulheres também no âmbito do trabalho» e nos vários lugares onde
se tomam as decisões importantes, tanto na Igreja como nas estruturas sociais.
104. As reivindicações dos legítimos direitos das mulheres, a partir da
firme convicção de que homens e mulheres têm a mesma dignidade, colocam à
Igreja questões profundas que a desafiam e não se podem iludir
superficialmente. O sacerdócio reservado aos homens, como sinal de Cristo
Esposo que Se entrega na Eucaristia, é uma questão que não se põe em discussão,
mas pode tornar-se particularmente controversa se se identifica demasiado a
potestade sacramental com o poder. Não se esqueça que, quando falamos da
potestade sacerdotal, «estamos na esfera da função e não na da dignidade e da
santidade». O sacerdócio ministerial é um dos meios que Jesus utiliza ao
serviço do seu povo, mas a grande dignidade vem do Baptismo, que é acessível a
todos. A configuração do sacerdote com Cristo Cabeça – isto é, como fonte
principal da graça – não comporta uma exaltação que o coloque por cima dos
demais. Na Igreja, as funções «não dão justificação à superioridade de uns
sobre os outros». Com efeito, uma mulher, Maria, é mais importante do que os
Bispos. Mesmo quando a função do sacerdócio ministerial é considerada
«hierárquica», há que ter bem presente que «se ordena integralmente à santidade
dos membros do corpo místico de Cristo». A sua pedra de fecho e o seu fulcro
não são o poder entendido como domínio, mas a potestade de administrar o
sacramento da Eucaristia; daqui deriva a sua autoridade, que é sempre um
serviço ao povo. Aqui está um grande desafio para os Pastores e para os
teólogos, que poderiam ajudar a reconhecer melhor o que isto implica no que se
refere ao possível lugar das mulheres onde se tomam decisões importantes, nos
diferentes âmbitos da Igreja.
105. A pastoral juvenil, tal como estávamos habituados a desenvolvê-la,
sofreu o impacto das mudanças sociais. Nas estruturas ordinárias, os jovens
habitualmente não encontram respostas para as suas preocupações, necessidades,
problemas e feridas. A nós, adultos, custa-nos ouvi-los com paciência,
compreender as suas preocupações ou as suas reivindicações, e aprender a
falar-lhes na linguagem que eles entendem. Pela mesma razão, as propostas
educacionais não produzem os frutos esperados. A proliferação e o crescimento
de associações e movimentos predominantemente juvenis podem ser interpretados
como uma acção do Espírito que abre caminhos novos em sintonia com as suas
expectativas e a busca de espiritualidade profunda e dum sentido mais concreto
de pertença. Todavia é necessário tornar mais estável a participação destas
agregações no âmbito da pastoral de conjunto da Igreja.
106. Embora nem sempre seja fácil abordar os jovens, houve crescimento
em dois aspectos: a consciência de que toda a comunidade os evangeliza e educa,
e a urgência de que eles tenham um protagonismo maior. Deve-se reconhecer que,
no actual contexto de crise do compromisso e dos laços comunitários, são muitos
os jovens que se solidarizam contra os males do mundo, aderindo a várias formas
de militância e voluntariado. Alguns participam na vida da Igreja, integram
grupos de serviço e diferentes iniciativas missionárias nas suas próprias
dioceses ou noutros lugares. Como é bom que os jovens sejam «caminheiros da
fé», felizes por levarem Jesus Cristo a cada esquina, a cada praça, a cada
canto da terra!
107. Em muitos lugares, há escassez de vocações ao sacerdócio e à vida
consagrada. Frequentemente isso fica-se a dever à falta de ardor apostólico
contagioso nas comunidades, pelo que estas não entusiasmam nem fascinam. Onde
há vida, fervor, paixão de levar Cristo aos outros, surgem vocações genuínas.
Mesmo em paróquias onde os sacerdotes não são muito disponíveis nem alegres, é
a vida fraterna e fervorosa da comunidade que desperta o desejo de se consagrar
inteiramente a Deus e à evangelização, especialmente se essa comunidade vivente
reza insistentemente pelas vocações e tem a coragem de propor aos seus jovens
um caminho de especial consagração. Por outro lado, apesar da escassez
vocacional, hoje temos noção mais clara da necessidade de melhor selecção dos
candidatos ao sacerdócio. Não se podem encher os seminários com qualquer tipo
de motivações, e menos ainda se estas estão relacionadas com insegurança
afectiva, busca de formas de poder, glória humana ou bem-estar económico.
108. Como já disse, não pretendi oferecer um diagnóstico completo, mas
convido as comunidades a completarem e a enriquecerem estas perspectivas a
partir da consciência dos desafios próprios e das comunidades vizinhas. Espero
que, ao fazê-lo, tenham em conta que, todas as vezes que intentamos ler os
sinais dos tempos na realidade actual, é conveniente ouvir os jovens e os
idosos. Tanto uns como outros são a esperança dos povos. Os idosos fornecem a
memória e a sabedoria da experiência, que convida a não repetir tontamente os
mesmos erros do passado. Os jovens chamam-nos a despertar e a aumentar a esperança,
porque trazem consigo as novas tendências da humanidade e abrem-nos ao futuro,
de modo que não fiquemos encalhados na nostalgia de estruturas e costumes que
já não são fonte de vida no mundo actual.
109. Os desafios existem para ser superados. Sejamos realistas, mas sem
perder a alegria, a audácia e a dedicação cheia de esperança. Não deixemos que
nos roubem a força missionária!
Capítulo III
O ANÚNCIO DO EVANGELHO
110. Depois de considerar alguns desafios da realidade actual, quero
agora recordar o dever que incumbe sobre nós em toda e qualquer época e lugar,
porque «não pode haver verdadeira evangelização sem o anúncio explícito de
Jesus como Senhor» e sem existir uma «primazia do anúncio de Jesus Cristo em
qualquer trabalho de evangelização». Recolhendo as preocupações dos Bispos
asiáticos, João Paulo II afirmou que, se a Igreja «deve realizar o seu destino
providencial, então uma evangelização entendida como o jubiloso, paciente e
progressivo anúncio da Morte salvífica e Ressurreição de Jesus Cristo há-de ser
a vossa prioridade absoluta». Isto é válido para todos.
1. Todo o povo de Deus anuncia o Evangelho
111. A evangelização é dever da Igreja. Este sujeito da evangelização,
porém, é mais do que uma instituição orgânica e hierárquica; é, antes de tudo,
um povo que peregrina para Deus. Trata-se certamente de um mistério que
mergulha as raízes na Trindade, mas tem a sua concretização histórica num povo
peregrino e evangelizador, que sempre transcende toda a necessária expressão
institucional. Proponho que nos detenhamos um pouco nesta forma de compreender
a Igreja, que tem o seu fundamento último na iniciativa livre e gratuita de
Deus.
Um povo para todos
112. A salvação, que Deus nos oferece, é obra da sua misericórdia. Não
há acção humana, por melhor que seja, que nos faça merecer tão grande dom. Por
pura graça, Deus atrai-nos para nos unir a Si. Envia o seu Espírito aos nossos
corações, para nos fazer seus filhos, para nos transformar e tornar capazes de
responder com a nossa vida ao seu amor. A Igreja é enviada por Jesus Cristo
como sacramento da salvação oferecida por Deus. Através da sua acção
evangelizadora, ela colabora como instrumento da graça divina, que opera
incessantemente para além de toda e qualquer possível supervisão. Bem o
exprimiu Bento XVI, ao abrir as reflexões do Sínodo: «É sempre importante saber
que a primeira palavra, a iniciativa verdadeira, a actividade verdadeira vem de
Deus e só inserindo-nos nesta iniciativa divina, só implorando esta iniciativa
divina, nos podemos tornar também – com Ele e n'Ele – evangelizadores». O
princípio da primazia da graça deve ser um farol que ilumine constantemente as
nossas reflexões sobre a evangelização.
113. Esta salvação, que Deus realiza e a Igreja jubilosamente anuncia, é
para todos, e Deus criou um caminho para Se unir a cada um dos seres humanos de
todos os tempos. Escolheu convocá-los como povo, e não como seres isolados.
Ninguém se salva sozinho, isto é, nem como indivíduo isolado, nem por suas
próprias forças. Deus atrai-nos, no respeito da complexa trama de relações
interpessoais que a vida numa comunidade humana supõe. Este povo, que Deus
escolheu para Si e convocou, é a Igreja. Jesus não diz aos Apóstolos para
formarem um grupo exclusivo, um grupo de elite. Jesus diz: «Ide, pois, fazei
discípulos de todos os povos» (Mt 28, 19). São Paulo afirma que no povo de
Deus, na Igreja, «não há judeu nem grego (...), porque todos sois um só em
Cristo Jesus» (Gal 3, 28). Eu gostaria de dizer àqueles que se sentem longe de
Deus e da Igreja, aos que têm medo ou aos indiferentes: o Senhor também te
chama para seres parte do seu povo, e fá-lo com grande respeito e amor!
114. Ser Igreja significa ser povo de Deus, de acordo com o grande
projecto de amor do Pai. Isto implica ser o fermento de Deus no meio da
humanidade; quer dizer anunciar e levar a salvação de Deus a este nosso mundo,
que muitas vezes se sente perdido, necessitado de ter respostas que encorajem,
dêem esperança e novo vigor para o caminho. A Igreja deve ser o lugar da
misericórdia gratuita, onde todos possam sentir-se acolhidos, amados, perdoados
e animados a viverem segundo a vida boa do Evangelho.
Um povo com muitos rostos
115. Este Povo de Deus encarna-se nos povos da Terra, cada um dos quais
tem a sua cultura própria. A noção de cultura é um instrumento precioso para
compreender as diversas expressões da vida cristã que existem no povo de Deus.
Trata-se do estilo de vida que uma determinada sociedade possui, da forma
peculiar que têm os seus membros de se relacionar entre si, com as outras
criaturas e com Deus. Assim entendida, a cultura abrange a totalidade da vida
dum povo. Cada povo, na sua evolução histórica, desenvolve a própria cultura
com legítima autonomia. Isso fica-se a dever ao facto de que a pessoa humana,
«por sua natureza, necessita absolutamente da vida social» e mantém contínua
referência à sociedade, na qual vive uma maneira concreta de se relacionar com
a realidade. O ser humano está sempre culturalmente situado: «natureza e
cultura encontram-se intimamente ligadas». A graça supõe a cultura, e o dom de
Deus encarna-se na cultura de quem o recebe.
116. Ao longo destes dois milénios de cristianismo, uma quantidade
inumerável de povos recebeu a graça da fé, fê-la florir na sua vida diária e
transmitiu-a segundo as próprias modalidades culturais. Quando uma comunidade
acolhe o anúncio da salvação, o Espírito Santo fecunda a sua cultura com a
força transformadora do Evangelho. E assim, como podemos ver na história da
Igreja, o cristianismo não dispõe de um único modelo cultural, mas
«permanecendo o que é, na fidelidade total ao anúncio evangélico e à tradição
da Igreja, o cristianismo assumirá também o rosto das diversas culturas e dos
vários povos onde for acolhido e se radicar». Nos diferentes povos, que
experimentam o dom de Deus segundo a própria cultura, a Igreja exprime a sua
genuína catolicidade e mostra «a beleza deste rosto pluriforme». Através das
manifestações cristãs dum povo evangelizado, o Espírito Santo embeleza a
Igreja, mostrando-lhe novos aspectos da Revelação e presenteando-a com um novo
rosto. Pela inculturação, a Igreja «introduz os povos com as suas culturas na
sua própria comunidade», porque «cada cultura oferece formas e valores
positivos que podem enriquecer o modo como o Evangelho é pregado, compreendido
e vivido». Assim, «a Igreja, assumindo os valores das diversas culturas,
torna-se sponsa ornata monilibus suis, a noiva que se adorna com suas jóias
(cf. Is 61, 10)».
117. Se for bem entendida, a diversidade cultural não ameaça a unidade
da Igreja. É o Espírito Santo, enviado pelo Pai e o Filho, que transforma os
nossos corações e nos torna capazes de entrar na comunhão perfeita da
Santíssima Trindade, onde tudo encontra a sua unidade. O Espírito Santo
constrói a comunhão e a harmonia do povo de Deus. Ele mesmo é a harmonia, tal
como é o vínculo de amor entre o Pai e o Filho. É Ele que suscita uma abundante
e diversificada riqueza de dons e, ao mesmo tempo, constrói uma unidade que
nunca é uniformidade, mas multiforme harmonia que atrai. A evangelização reconhece
com alegria estas múltiplas riquezas que o Espírito gera na Igreja. Não faria
justiça à lógica da encarnação pensar num cristianismo monocultural e
monocórdico. É verdade que algumas culturas estiveram intimamente ligadas à
pregação do Evangelho e ao desenvolvimento do pensamento cristão, mas a
mensagem revelada não se identifica com nenhuma delas e possui um conteúdo
transcultural. Por isso, na evangelização de novas culturas ou de culturas que
não acolheram a pregação cristã, não é indispensável impor uma determinada
forma cultural, por mais bela e antiga que seja, juntamente com a proposta do
Evangelho. A mensagem, que anunciamos, sempre apresenta alguma roupagem
cultural, mas às vezes, na Igreja, caímos na vaidosa sacralização da própria
cultura, o que pode mostrar mais fanatismo do que autêntico ardor
evangelizador.
118. Os Bispos da Oceânia pediram que a Igreja neste continente
«desenvolva uma compreensão e exposição da verdade de Cristo partindo das
tradições e culturas locais», e instaram todos os missionários «a trabalhar de
harmonia com os cristãos indígenas para garantir que a doutrina e a vida da
Igreja sejam expressas em formas legítimas e apropriadas a cada cultura». Não
podemos pretender que todos os povos dos vários continentes, ao exprimir a fé
cristã, imitem as modalidades adoptadas pelos povos europeus num determinado
momento da história, porque a fé não se pode confinar dentro dos limites de
compreensão e expressão duma cultura. É indiscutível que uma única cultura não
esgota o mistério da redenção de Cristo.
Todos somos discípulos missionários
119. Em todos os baptizados, desde o primeiro ao último, actua a força
santificadora do Espírito que impele a evangelizar. O povo de Deus é santo em
virtude desta unção, que o torna infalível «in credendo», ou seja, ao crer, não
pode enganar-se, ainda que não encontre palavras para explicar a sua fé. O
Espírito guia-o na verdade e condu-lo à salvação. Como parte do seu mistério de
amor pela humanidade, Deus dota a totalidade dos fiéis com um instinto da fé –
o sensus fidei – que os ajuda a discernir o que vem realmente de Deus. A
presença do Espírito confere aos cristãos uma certa conaturalidade com as
realidades divinas e uma sabedoria que lhes permite captá-las intuitivamente,
embora não possuam os meios adequados para expressá-las com precisão.
120. Em virtude do Baptismo recebido, cada membro do povo de Deus
tornou-se discípulo missionário (cf. Mt 28, 19). Cada um dos baptizados,
independentemente da própria função na Igreja e do grau de instrução da sua fé,
é um sujeito activo de evangelização, e seria inapropriado pensar num esquema
de evangelização realizado por agentes qualificados enquanto o resto do povo
fiel seria apenas receptor das suas acções. A nova evangelização deve implicar
um novo protagonismo de cada um dos baptizados. Esta convicção transforma-se
num apelo dirigido a cada cristão para que ninguém renuncie ao seu compromisso
de evangelização, porque, se uma pessoa experimentou verdadeiramente o amor de
Deus que o salva, não precisa de muito tempo de preparação para sair a
anunciá-lo, não pode esperar que lhe dêem muitas lições ou longas instruções.
Cada cristão é missionário na medida em que se encontrou com o amor de Deus em
Cristo Jesus; não digamos mais que somos «discípulos» e «missionários», mas
sempre que somos «discípulos missionários». Se não estivermos convencidos
disto, olhemos para os primeiros discípulos, que logo depois de terem conhecido
o olhar de Jesus, saíram proclamando cheios de alegria: «Encontrámos o Messias»
(Jo 1, 41). A Samaritana, logo que terminou o seu diálogo com Jesus, tornou-se
missionária, e muitos samaritanos acreditaram em Jesus «devido às palavras da
mulher» (Jo 4, 39). Também São Paulo, depois do seu encontro com Jesus Cristo,
«começou imediatamente a proclamar (…) que Jesus era o Filho de Deus» (Act 9,
20). Porque esperamos nós?
121. Certamente todos somos chamados a crescer como evangelizadores.
Devemos procurar simultaneamente uma melhor formação, um aprofundamento do
nosso amor e um testemunho mais claro do Evangelho. Neste sentido, todos
devemos deixar que os outros nos evangelizem constantemente; isto não significa
que devemos renunciar à missão evangelizadora, mas encontrar o modo de
comunicar Jesus que corresponda à situação em que vivemos. Seja como for, todos
somos chamados a dar aos outros o testemunho explícito do amor salvífico do
Senhor, que, sem olhar às nossas imperfeições, nos oferece a sua proximidade, a
sua Palavra, a sua força, e dá sentido à nossa vida. O teu coração sabe que a vida
não é a mesma coisa sem Ele; pois bem, aquilo que descobriste, o que te ajuda a
viver e te dá esperança, isso é o que deves comunicar aos outros. A nossa
imperfeição não deve ser desculpa; pelo contrário, a missão é um estímulo
constante para não nos acomodarmos na mediocridade, mas continuarmos a crescer.
O testemunho de fé, que todo o cristão é chamado a oferecer, implica dizer como
São Paulo: «Não que já o tenha alcançado ou já seja perfeito; mas corro para
ver se o alcanço, (…) lançando-me para o que vem à frente» (Fl 3, 12-13).
A força evangelizadora da piedade popular
122. Da mesma forma, podemos pensar que os diferentes povos, nos quais
foi inculturado o Evangelho, são sujeitos colectivos activos, agentes da
evangelização. Assim é, porque cada povo é o criador da sua cultura e o
protagonista da sua história. A cultura é algo de dinâmico, que um povo recria
constantemente, e cada geração transmite à seguinte um conjunto de atitudes
relativas às diversas situações existenciais, que esta nova geração deve
reelaborar face aos próprios desafios. O ser humano «é simultaneamente filho e
pai da cultura onde está inserido». Quando o Evangelho se inculturou num povo,
no seu processo de transmissão cultural também transmite a fé de maneira sempre
nova; daí a importância da evangelização entendida como inculturação. Cada
porção do povo de Deus, ao traduzir na vida o dom de Deus segundo a sua índole
própria, dá testemunho da fé recebida e enriquece-a com novas expressões que
falam por si. Pode dizer-se que «o povo se evangeliza continuamente a si
mesmo». Aqui ganha importância a piedade popular, verdadeira expressão da
actividade missionária espontânea do povo de Deus. Trata-se de uma realidade em
permanente desenvolvimento, cujo protagonista é o Espírito Santo.
123. Na piedade popular, pode-se captar a modalidade em que a fé
recebida se encarnou numa cultura e continua a transmitir-se. Vista por vezes
com desconfiança, a piedade popular foi objecto de revalorização nas décadas
posteriores ao Concílio. Quem deu um impulso decisivo nesta direcção, foi Paulo
VI na sua Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi. Nela explica que a piedade
popular «traduz em si uma certa sede de Deus, que somente os pobres e os
simples podem experimentar» e «torna as pessoas capazes para terem rasgos de
generosidade e predispõe-nas para o sacrifício até ao heroísmo, quando se trata
de manifestar a fé». Já mais perto dos nossos dias, Bento XVI, na América
Latina, assinalou que se trata de um «precioso tesouro da Igreja Católica» e
que nela «aparece a alma dos povos latino-americanos».
124. No Documento de Aparecida, descrevem-se as riquezas que o Espírito
Santo explicita na piedade popular por sua iniciativa gratuita. Naquele amado
Continente, onde uma multidão imensa de cristãos exprime a sua fé através da
piedade popular, os Bispos chamam-na também «espiritualidade popular» ou
«mística popular». Trata-se de uma verdadeira «espiritualidade encarnada na
cultura dos simples». Não é vazia de conteúdos, mas descobre-os e exprime-os
mais pela via simbólica do que pelo uso da razão instrumental e, no acto de fé,
acentua mais o credere in Deum que o credere Deum. É «uma maneira legítima de
viver a fé, um modo de se sentir parte da Igreja e uma forma de ser
missionários»; comporta a graça da missionariedade, do sair de si e do
peregrinar: «O caminhar juntos para os santuários e o participar em outras
manifestações da piedade popular, levando também os filhos ou convidando a
outras pessoas, é em si mesmo um gesto evangelizador». Não coarctemos nem pretendamos
controlar esta força missionária!
125. Para compreender esta necessidade, é preciso abordá-la com o olhar
do Bom Pastor, que não procura julgar mas amar. Só a partir da conaturalidade
afectiva que dá o amor é que podemos apreciar a vida teologal presente na
piedade dos povos cristãos, especialmente nos pobres. Penso na fé firme das
mães ao pé da cama do filho doente, que se agarram a um terço ainda que não
saibam elencar os artigos do Credo; ou na carga imensa de esperança contida
numa vela que se acende, numa casa humilde, para pedir ajuda a Maria, ou nos
olhares de profundo amor a Cristo crucificado. Quem ama o povo fiel de Deus,
não pode ver estas acções unicamente como uma busca natural da divindade; são a
manifestação duma vida teologal animada pela acção do Espírito Santo, que foi
derramado em nossos corações (cf. Rm 5, 5).
126. Na piedade popular, por ser fruto do Evangelho inculturado, subjaz
uma força activamente evangelizadora que não podemos subestimar: seria ignorar
a obra do Espírito Santo. Ao contrário, somos chamados a encorajá-la e
fortalecê-la para aprofundar o processo de inculturação, que é uma realidade
nunca acabada. As expressões da piedade popular têm muito que nos ensinar e,
para quem as sabe ler, são um lugar teológico a que devemos prestar atenção
particularmente na hora de pensar a nova evangelização.
De pessoa a pessoa
127. Hoje que a Igreja deseja viver uma profunda renovação missionária,
há uma forma de pregação que nos compete a todos como tarefa diária: é cada um
levar o Evangelho às pessoas com quem se encontra, tanto aos mais íntimos como
aos desconhecidos. É a pregação informal que se pode realizar durante uma
conversa, e é também a que realiza um missionário quando visita um lar. Ser
discípulo significa ter a disposição permanente de levar aos outros o amor de
Jesus; e isto sucede espontaneamente em qualquer lugar: na rua, na praça, no
trabalho, num caminho.
128. Nesta pregação, sempre respeitosa e amável, o primeiro momento é um
diálogo pessoal, no qual a outra pessoa se exprime e partilha as suas alegrias,
as suas esperanças, as preocupações com os seus entes queridos e muitas coisas
que enchem o coração. Só depois desta conversa é que se pode apresentar-lhe a
Palavra, seja pela leitura de algum versículo ou de modo narrativo, mas sempre
recordando o anúncio fundamental: o amor pessoal de Deus que Se fez homem, entregou-Se
a Si mesmo por nós e, vivo, oferece a sua salvação e a sua amizade. É o anúncio
que se partilha com uma atitude humilde e testemunhal de quem sempre sabe
aprender, com a consciência de que esta mensagem é tão rica e profunda que
sempre nos ultrapassa. Umas vezes exprime-se de maneira mais directa, outras
através dum testemunho pessoal, uma história, um gesto, ou outra forma que o
próprio Espírito Santo possa suscitar numa circunstância concreta. Se parecer
prudente e houver condições, é bom que este encontro fraterno e missionário
conclua com uma breve oração que se relacione com as preocupações que a pessoa
manifestou. Assim ela sentirá mais claramente que foi ouvida e interpretada,
que a sua situação foi posta nas mãos de Deus, e reconhecerá que a Palavra de
Deus fala realmente à sua própria vida.
129. Contudo não se deve pensar que o anúncio evangélico tenha de ser
transmitido sempre com determinadas fórmulas pré-estabelecidas ou com palavras
concretas que exprimam um conteúdo absolutamente invariável. Transmite-se com
formas tão diversas que seria impossível descrevê-las ou catalogá-las, e cujo
sujeito colectivo é o povo de Deus com seus gestos e sinais inumeráveis. Por
conseguinte, se o Evangelho se encarnou numa cultura, já não se comunica apenas
através do anúncio de pessoa a pessoa. Isto deve fazer-nos pensar que, nos
países onde o cristianismo é minoria, para além de animar cada baptizado a
anunciar o Evangelho, as Igrejas particulares hão-de promover activamente
formas, pelo menos incipientes, de inculturação. Enfim, o que se deve procurar
é que a pregação do Evangelho, expressa com categorias próprias da cultura onde
é anunciado, provoque uma nova síntese com essa cultura. Embora estes processos
sejam sempre lentos, às vezes o medo paralisa-nos demasiado. Se deixamos que as
dúvidas e os medos sufoquem toda a ousadia, é possível que, em vez de sermos
criativos, nos deixemos simplesmente ficar cómodos sem provocar qualquer avanço
e, neste caso, não seremos participantes dos processos históricos com a nossa
cooperação, mas simplesmente espectadores duma estagnação estéril da Igreja.
Carismas ao serviço da comunhão evangelizadora
130. O Espírito Santo enriquece toda a Igreja evangelizadora também com
diferentes carismas. São dons para renovar e edificar a Igreja. Não se trata de
um património fechado, entregue a um grupo para que o guarde; mas são presentes
do Espírito integrados no corpo eclesial, atraídos para o centro que é Cristo,
donde são canalizados num impulso evangelizador. Um sinal claro da
autenticidade dum carisma é a sua eclesialidade, a sua capacidade de se
integrar harmoniosamente na vida do povo santo de Deus para o bem de todos. Uma
verdadeira novidade suscitada pelo Espírito não precisa de fazer sombra sobre
outras espiritualidades e dons para se afirmar a si mesma. Quanto mais um
carisma dirigir o seu olhar para o coração do Evangelho, tanto mais eclesial
será o seu exercício. É na comunhão, mesmo que seja fadigosa, que um carisma se
revela autêntica e misteriosamente fecundo. Se vive este desafio, a Igreja pode
ser um modelo para a paz no mundo.
131. As diferenças entre as pessoas e as comunidades por vezes são
incómodas, mas o Espírito Santo, que suscita esta diversidade, de tudo pode
tirar algo de bom e transformá-lo em dinamismo evangelizador que actua por
atracção. A diversidade deve ser sempre conciliada com a ajuda do Espírito
Santo; só Ele pode suscitar a diversidade, a pluralidade, a multiplicidade e,
ao mesmo tempo, realizar a unidade. Ao invés, quando somos nós que pretendemos
a diversidade e nos fechamos em nossos particularismos, em nossos
exclusivismos, provocamos a divisão; e, por outro lado, quando somos nós que
queremos construir a unidade com os nossos planos humanos, acabamos por impor a
uniformidade, a homologação. Isto não ajuda a missão da Igreja.
Cultura, pensamento e educação
132. O anúncio às culturas implica também um anúncio às culturas
profissionais, científicas e académicas. É o encontro entre a fé, a razão e as
ciências, que visa desenvolver um novo discurso sobre a credibilidade, uma
apologética original que ajude a criar as predisposições para que o Evangelho
seja escutado por todos. Quando algumas categorias da razão e das ciências são
acolhidas no anúncio da mensagem, tais categorias tornam-se instrumentos de
evangelização; é a água transformada em vinho. É aquilo que, uma vez assumido,
não só é redimido, mas torna-se instrumento do Espírito para iluminar e renovar
o mundo.
133. Uma vez que não basta a preocupação do evangelizador por chegar a
cada pessoa, mas o Evangelho também se anuncia às culturas no seu conjunto, a
teologia – e não só a teologia pastoral – em diálogo com outras ciências e
experiências humanas tem grande importância para pensar como fazer chegar a
proposta do Evangelho à variedade dos contextos culturais e dos destinatários.
A Igreja, comprometida na evangelização, aprecia e encoraja o carisma dos
teólogos e o seu esforço na investigação teológica, que promove o diálogo com o
mundo da cultura e da ciência. Faço apelo aos teólogos para que cumpram este
serviço como parte da missão salvífica da Igreja. Mas, para isso, é necessário
que tenham a peito a finalidade evangelizadora da Igreja e da própria teologia,
e não se contentem com uma teologia de gabinete.
134. As universidades são um âmbito privilegiado para pensar e
desenvolver este compromisso de evangelização de modo interdisciplinar e
inclusivo. As escolas católicas, que sempre procuram conjugar a tarefa
educacional com o anúncio explícito do Evangelho, constituem uma contribuição muito
válida para a evangelização da cultura, mesmo em países e cidades onde uma
situação adversa nos incentiva a usar a nossa criatividade para se encontrar os
caminhos adequados.
2. A homilia
135. Consideremos agora a pregação dentro da Liturgia, que requer uma
séria avaliação por parte dos Pastores. Deter-me-ei particularmente, e até com
certa meticulosidade, na homilia e sua preparação, porque são muitas as
reclamações relacionadas com este ministério importante, e não podemos fechar
os ouvidos. A homilia é o ponto de comparação para avaliar a proximidade e a
capacidade de encontro de um Pastor com o seu povo. De facto, sabemos que os
fiéis lhe dão muita importância; e, muitas vezes, tanto eles como os próprios
ministros ordenados sofrem: uns a ouvir e os outros a pregar. É triste que
assim seja. A homilia pode ser, realmente, uma experiência intensa e feliz do
Espírito, um consolador encontro com a Palavra, uma fonte constante de
renovação e crescimento.
136. Renovemos a nossa confiança na pregação, que se funda na convicção
de que é Deus que deseja alcançar os outros através do pregador e de que Ele
mostra o seu poder através da palavra humana. São Paulo fala vigorosamente
sobre a necessidade de pregar, porque o Senhor quis chegar aos outros por meio
também da nossa palavra (cf. Rm 10, 14-17). Com a palavra, Nosso Senhor
conquistou o coração da gente. De todas as partes, vinham para O ouvir (cf. Mc
1, 45). Ficavam maravilhados, «bebendo» os seus ensinamentos (cf. Mc 6, 2).
Sentiam que lhes falava como quem tem autoridade (cf. Mc 1, 27). E os
Apóstolos, que Jesus estabelecera «para estarem com Ele e para os enviar a
pregar» (Mc 3, 14), atraíram para o seio da Igreja todos os povos com a palavra
(cf. Mc 16, 15.20).
O contexto litúrgico
137. Agora é oportuno recordar que «a proclamação litúrgica da Palavra
de Deus, principalmente no contexto da assembleia eucarística, não é tanto um
momento de meditação e de catequese, como sobretudo o diálogo de Deus com o seu
povo, no qual se proclamam as maravilhas da salvação e se propõem continuamente
as exigências da Aliança». Reveste-se de um valor especial a homilia, derivado
do seu contexto eucarístico, que supera toda a catequese por ser o momento mais
alto do diálogo entre Deus e o seu povo, antes da comunhão sacramental. A
homilia é um retomar este diálogo que já está estabelecido entre o Senhor e o
seu povo. Aquele que prega deve conhecer o coração da sua comunidade para
identificar onde está vivo e ardente o desejo de Deus e também onde é que este
diálogo de amor foi sufocado ou não pôde dar fruto.
138. A homilia não pode ser um espectáculo de divertimento, não
corresponde à lógica dos recursos mediáticos, mas deve dar fervor e significado
à celebração. É um género peculiar, já que se trata de uma pregação no quadro duma
celebração litúrgica; por conseguinte, deve ser breve e evitar que se pareça
com uma conferência ou uma lição. O pregador pode até ser capaz de manter vivo
o interesse das pessoas por uma hora, mas assim a sua palavra torna-se mais
importante que a celebração da fé. Se a homilia se prolonga demasiado, lesa
duas características da celebração litúrgica: a harmonia entre as suas partes e
o seu ritmo. Quando a pregação se realiza no contexto da Liturgia, incorpora-se
como parte da oferenda que se entrega ao Pai e como mediação da graça que
Cristo derrama na celebração. Este mesmo contexto exige que a pregação oriente
a assembleia, e também o pregador, para uma comunhão com Cristo na Eucaristia,
que transforme a vida. Isto requer que a palavra do pregador não ocupe um lugar
excessivo, para que o Senhor brilhe mais que o ministro.
A conversa da mãe
139. Dissemos que o povo de Deus, pela acção constante do Espírito nele,
se evangeliza continuamente a si mesmo. Que implicações tem esta convicção para
o pregador? Lembra-nos que a Igreja é mãe e prega ao povo como uma mãe fala ao
seu filho, sabendo que o filho tem confiança de que tudo o que se lhe ensina é
para seu bem, porque se sente amado. Além disso, a boa mãe sabe reconhecer tudo
o que Deus semeou no seu filho, escuta as suas preocupações e aprende com ele.
O espírito de amor que reina numa família guia tanto a mãe como o filho nos
seus diálogos, nos quais se ensina e aprende, se corrige e valoriza o que é
bom; assim deve acontecer também na homilia. O Espírito que inspirou os
Evangelhos e actua no povo de Deus, inspira também como se deve escutar a fé do
povo e como se deve pregar em cada Eucaristia. Portanto a pregação cristã
encontra, no coração da cultura do povo, um manancial de água viva tanto para
saber o que se deve dizer como para encontrar o modo mais apropriado para o
dizer. Assim como todos gostamos que nos falem na nossa língua materna, assim
também, na fé, gostamos que nos falem em termos da «cultura materna», em termos
do idioma materno (cf. 2 Mac 7, 21.27), e o coração dispõe-se a ouvir melhor.
Esta linguagem é uma tonalidade que transmite coragem, inspiração, força,
impulso.
140. Este âmbito materno-eclesial, onde se desenrola o diálogo do Senhor
com o seu povo, deve ser encarecido e cultivado através da proximidade cordial
do pregador, do tom caloroso da sua voz, da mansidão do estilo das suas frases,
da alegria dos seus gestos. Mesmo que às vezes a homilia seja um pouco maçante,
se houver este espírito materno-eclesial, será sempre fecunda, tal como os
conselhos maçantes duma mãe, com o passar do tempo, dão fruto no coração dos
filhos.
141. Ficamos admirados com os recursos empregues pelo Senhor para
dialogar com o seu povo, revelar o seu mistério a todos, cativar a gente comum
com ensinamentos tão elevados e exigentes. Creio que o segredo de Jesus esteja
escondido naquele seu olhar o povo mais além das suas fraquezas e quedas: «Não
temais, pequenino rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o Reino» (Lc 12,
32); Jesus prega com este espírito. Transbordando de alegria no Espírito,
bendiz o Pai por Lhe atrair os pequeninos: «Bendigo-Te, ó Pai, Senhor do Céu e
da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as
revelaste aos pequeninos» (Lc 10, 21). O Senhor compraz-Se verdadeiramente em
dialogar com o seu povo, e compete ao pregador fazer sentir este gosto do
Senhor ao seu povo.
Palavras que abrasam os corações
142. Um diálogo é muito mais do que a comunicação duma verdade.
Realiza-se pelo prazer de falar e pelo bem concreto que se comunica através das
palavras entre aqueles que se amam. É um bem que não consiste em coisas, mas
nas próprias pessoas que mutuamente se dão no diálogo. A pregação puramente
moralista ou doutrinadora e também a que se transforma numa lição de exegese
reduzem esta comunicação entre os corações que se verifica na homilia e que
deve ter um carácter quase sacramental: «A fé surge da pregação, e a pregação
surge pela palavra de Cristo» (Rm 10, 17). Na homilia, a verdade anda de mãos
dadas com a beleza e o bem. Não se trata de verdades abstractas ou de
silogismos frios, porque se comunica também a beleza das imagens que o Senhor
utilizava para incentivar a prática do bem. A memória do povo fiel, como a de
Maria, deve ficar transbordante das maravilhas de Deus. O seu coração,
esperançado na prática alegre e possível do amor que lhe foi anunciado, sente
que toda a palavra na Escritura, antes de ser exigência, é dom.
143. O desafio duma pregação inculturada consiste em transmitir a
síntese da mensagem evangélica, e não ideias ou valores soltos. Onde está a tua
síntese, ali está o teu coração. A diferença entre fazer luz com sínteses e o
fazê-lo com ideias soltas é a mesma que há entre o ardor do coração e o tédio.
O pregador tem a belíssima e difícil missão de unir os corações que se amam: o
do Senhor e os do seu povo. O diálogo entre Deus e o seu povo reforça ainda
mais a aliança entre ambos e estreita o vínculo da caridade. Durante o tempo da
homilia, os corações dos crentes fazem silêncio e deixam-No falar a Ele. O
Senhor e o seu povo falam-se de mil e uma maneiras directamente, sem
intermediários, mas, na homilia, querem que alguém sirva de instrumento e
exprima os sentimentos, de modo que, depois, cada um possa escolher como
continuar a sua conversa. A palavra é, essencialmente, mediadora e necessita
não só dos dois dialogantes mas também de um pregador que a represente como
tal, convencido de que «não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus, o
Senhor, e nos consideramos vossos servos, por amor de Jesus» (2 Cor 4, 5).
144. Falar com o coração implica mantê-lo não só ardente, mas também
iluminado pela integridade da Revelação e pelo caminho que essa Palavra
percorreu no coração da Igreja e do nosso povo fiel ao longo da sua história. A
identidade cristã, que é aquele abraço baptismal que o Pai nos deu em
pequeninos, faz-nos anelar, como filhos pródigos – e predilectos em Maria –,
pelo outro abraço, o do Pai misericordioso que nos espera na glória. Fazer com
que o nosso povo se sinta, de certo modo, no meio destes dois abraços é a
tarefa difícil, mas bela, de quem prega o Evangelho.
3. A preparação da pregação
145. A preparação da pregação é uma tarefa tão importante que convém
dedicar-lhe um tempo longo de estudo, oração, reflexão e criatividade pastoral.
Com muita amizade, quero deter-me a propor um itinerário de preparação da
homilia. Trata-se de indicações que, para alguns, poderão parecer óbvias, mas
considero oportuno sugeri-las para recordar a necessidade de dedicar um tempo
privilegiado a este precioso ministério. Alguns párocos sustentam
frequentemente que isto não é possível por causa de tantas incumbências que
devem desempenhar; todavia atrevo-me a pedir que todas as semanas se dedique a
esta tarefa um tempo pessoal e comunitário suficientemente longo, mesmo que se
tenha de dar menos tempo a outras tarefas também importantes. A confiança no
Espírito Santo que actua na pregação não é meramente passiva, mas activa e
criativa. Implica oferecer-se como instrumento (cf. Rm 12, 1), com todas as
próprias capacidades, para que possam ser utilizadas por Deus. Um pregador que
não se prepara não é «espiritual»: é desonesto e irresponsável quanto aos dons
que recebeu.
O culto da verdade
146. O primeiro passo, depois de invocar o Espírito Santo, é prestar
toda a atenção ao texto bíblico, que deve ser o fundamento da pregação. Quando
alguém se detém procurando compreender qual é a mensagem dum texto, exerce o
«culto da verdade». É a humildade do coração que reconhece que a Palavra sempre
nos transcende, que somos, «não os árbitros nem os proprietários, mas os
depositários, os arautos e os servidores». Esta atitude de humilde e
deslumbrada veneração da Palavra exprime-se detendo-se a estudá-la com o máximo
cuidado e com um santo temor de a manipular. Para se poder interpretar um texto
bíblico, faz falta paciência, pôr de parte toda a ansiedade e atribuir-lhe
tempo, interesse e dedicação gratuita. Há que pôr de lado qualquer preocupação
que nos inquiete, para entrar noutro âmbito de serena atenção. Não vale a pena
dedicar-se a ler um texto bíblico, se aquilo que se quer obter são resultados
rápidos, fáceis ou imediatos. Por isso, a preparação da pregação requer amor.
Uma pessoa só dedica um tempo gratuito e sem pressa às coisas ou às pessoas que
ama; e aqui trata-se de amar a Deus, que quis falar. A partir deste amor, uma
pessoa pode deter-se todo o tempo que for necessário, com a atitude dum
discípulo: «Fala, Senhor; o teu servo escuta» (1 Sam 3, 9).
147. Em primeiro lugar, convém estarmos seguros de compreender
adequadamente o significado das palavras que lemos. Quero insistir em algo que
parece evidente, mas que nem sempre é tido em conta: o texto bíblico, que
estudamos, tem dois ou três mil anos, a sua linguagem é muito diferente da que
usamos agora. Por mais que nos pareça termos entendido as palavras, que estão
traduzidas na nossa língua, isso não significa que compreendemos correctamente
tudo o que o escritor sagrado queria exprimir. São conhecidos os vários
recursos que proporciona a análise literária: prestar atenção às palavras que
se repetem ou evidenciam, reconhecer a estrutura e o dinamismo próprio dum
texto, considerar o lugar que ocupam os personagens, etc. Mas o objectivo não é
o de compreender todos os pequenos detalhes dum texto; o mais importante é
descobrir qual é a mensagem principal, a mensagem que confere estrutura e
unidade ao texto. Se o pregador não faz este esforço, é possível que também a
sua pregação não tenha unidade nem ordem; o seu discurso será apenas uma súmula
de várias ideias desarticuladas que não conseguirão mobilizar os outros. A
mensagem central é aquela que o autor quis primariamente transmitir, o que
implica identificar não só uma ideia mas também o efeito que esse autor quis
produzir. Se um texto foi escrito para consolar, não deveria ser utilizado para
corrigir erros; se foi escrito para exortar, não deveria ser utilizado para
instruir; se foi escrito para ensinar algo sobre Deus, não deveria ser
utilizado para explicar várias opiniões teológicas; se foi escrito para levar
ao louvor ou ao serviço missionário, não o utilizemos para informar sobre as
últimas notícias.
148. É verdade que, para se entender adequadamente o sentido da mensagem
central dum texto, é preciso colocá-lo em ligação com o ensinamento da Bíblia
inteira, transmitida pela Igreja. Este é um princípio importante da
interpretação bíblica, que tem em conta que o Espírito Santo não inspirou só
uma parte, mas a Bíblia inteira, e que, nalgumas questões, o povo cresceu na
sua compreensão da vontade de Deus a partir da experiência vivida. Assim se
evitam interpretações equivocadas ou parciais, que contradizem outros
ensinamentos da mesma Escritura. Mas isto não significa enfraquecer a
acentuação própria e específica do texto que se deve pregar. Um dos defeitos
duma pregação enfadonha e ineficaz é precisamente não poder transmitir a força
própria do texto que foi proclamado.
A personalização da Palavra
149. O pregador «deve ser o primeiro a desenvolver uma grande
familiaridade pessoal com a Palavra de Deus: não lhe basta conhecer o aspecto
linguístico ou exegético, sem dúvida necessário; precisa de se abeirar da
Palavra com o coração dócil e orante, a fim de que ela penetre a fundo nos seus
pensamentos e sentimentos e gere nele uma nova mentalidade». Faz-nos bem
renovar, cada dia, cada domingo, o nosso ardor na preparação da homilia, e
verificar se, em nós mesmos, cresce o amor pela Palavra que pregamos. É bom não
esquecer que, «particularmente, a maior ou menor santidade do ministro influi
sobre o anúncio da Palavra». Como diz São Paulo, «falamos, não para agradar aos
homens, mas a Deus que põe à prova os nossos corações» (1 Ts 2, 4). Se está
vivo este desejo de, primeiro, ouvirmos nós a Palavra que temos de pregar, esta
transmitir-se-á duma maneira ou doutra ao povo fiel de Deus: «A boca fala da
abundância do coração» (Mt 12, 34). As leituras do domingo ressoarão com todo o
seu esplendor no coração do povo, se primeiro ressoarem assim no coração do
Pastor.
150. Jesus irritava-Se com pretensiosos mestres, muito exigentes com os
outros, que ensinavam a Palavra de Deus mas não se deixavam iluminar por ela:
«Atam fardos pesados e insuportáveis e colocam-nos aos ombros dos outros, mas
eles não põem nem um dedo para os deslocar» (Mt 23, 4). E o Apóstolo São Tiago
exortava: «Meus irmãos, não haja muitos entre vós que pretendam ser mestres,
sabendo que nós teremos um julgamento mais severo» (3, 1). Quem quiser pregar,
deve primeiro estar disposto a deixar-se tocar pela Palavra e fazê-la carne na
sua vida concreta. Assim, a pregação consistirá na actividade tão intensa e
fecunda que é «comunicar aos outros o que foi contemplado». Por tudo isto,
antes de preparar concretamente o que vai dizer na pregação, o pregador tem que
aceitar ser primeiro trespassado por essa Palavra que há-de trespassar os
outros, porque é uma Palavra viva e eficaz, que, como uma espada, «penetra até
à divisão da alma e do corpo, das articulações e das medulas, e discerne os
sentimentos e intenções do coração» (Heb 4, 12). Isto tem um valor pastoral.
Mesmo nesta época, a gente prefere escutar as testemunhas: «Tem sede de
autenticidade (...), reclama evangelizadores que lhe falem de um Deus que eles
conheçam e lhes seja familiar como se eles vissem o invisível».
151. Não nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessamos de
melhorar, vivamos o desejo profundo de progredir no caminho do Evangelho, e não
deixemos cair os braços. Indispensável é que o pregador esteja seguro de que
Deus o ama, de que Jesus Cristo o salvou, de que o seu amor tem sempre a última
palavra. À vista de tanta beleza, sentirá muitas vezes que a sua vida não lhe
dá plenamente glória e desejará sinceramente corresponder melhor a um amor tão
grande. Todavia, se não se detém com sincera abertura a escutar esta Palavra,
se não deixa que a mesma toque a sua vida, que o interpele, exorte, mobilize,
se não dedica tempo para rezar com esta Palavra, então na realidade será um
falso profeta, um embusteiro ou um charlatão vazio. Em todo o caso, desde que
reconheça a sua pobreza e deseje comprometer-se mais, sempre poderá dar Jesus
Cristo, dizendo como Pedro: «Não tenho ouro nem prata, mas o que tenho, isto te
dou» (Act 3, 6). O Senhor quer servir-Se de nós como seres vivos, livres e criativos,
que se deixam penetrar pela sua Palavra antes de a transmitir; a sua mensagem
deve passar realmente através do pregador, e não só pela sua razão, mas tomando
posse de todo o seu ser. O Espírito Santo, que inspirou a Palavra, é quem «hoje
ainda, como nos inícios da Igreja, age em cada um dos evangelizadores que se
deixa possuir e conduzir por Ele, e põe na sua boca as palavras que ele sozinho
não poderia encontrar».
A leitura espiritual
152. Há uma modalidade concreta para escutarmos aquilo que o Senhor nos
quer dizer na sua Palavra e nos deixarmos transformar pelo Espírito:
designamo-la por «lectio divina». Consiste na leitura da Palavra de Deus num
tempo de oração, para lhe permitir que nos ilumine e renove. Esta leitura
orante da Bíblia não está separada do estudo que o pregador realiza para
individuar a mensagem central do texto; antes pelo contrário, é dela que deve
partir para procurar descobrir aquilo que essa mesma mensagem tem a dizer à sua
própria vida. A leitura espiritual dum texto deve partir do seu sentido
literal. Caso contrário, uma pessoa facilmente fará o texto dizer o que lhe
convém, o que serve para confirmar as suas próprias decisões, o que se adapta
aos seus próprios esquemas mentais. E isto seria, em última análise, usar o
sagrado para proveito próprio e passar esta confusão para o povo de Deus. Nunca
devemos esquecer-nos de que, por vezes, «também Satanás se disfarça em anjo de
luz» (2 Cor 11, 14).
153. Na presença de Deus, numa leitura tranquila do texto, é bom
perguntar-se, por exemplo: «Senhor, a mim que me diz este texto? Com esta
mensagem, que quereis mudar na minha vida? Que é que me dá fastídio neste
texto? Porque é que isto não me interessa?»; ou então: «De que gosto? Em que me
estimula esta Palavra? Que me atrai? E porque me atrai?». Quando se procura
ouvir o Senhor, é normal ter tentações. Uma delas é simplesmente sentir-se
chateado e acabrunhado e dar tudo por encerrado; outra tentação muito comum é
começar a pensar naquilo que o texto diz aos outros, para evitar de o aplicar à
própria vida. Acontece também começar a procurar desculpas, que nos permitam
diluir a mensagem específica do texto. Outras vezes pensamos que Deus nos exige
uma decisão demasiado grande, que ainda não estamos em condições de tomar. Isto
leva muitas pessoas a perderem a alegria do encontro com a Palavra, mas isso
significaria esquecer que ninguém é mais paciente do que Deus Pai, ninguém
compreende e sabe esperar como Ele. Deus convida sempre a dar um passo mais,
mas não exige uma resposta completa, se ainda não percorremos o caminho que a
torna possível. Apenas quer que olhemos com sinceridade a nossa vida e a
apresentemos sem fingimento diante dos seus olhos, que estejamos dispostos a
continuar a crescer, e peçamos a Ele o que ainda não podemos conseguir.
À escuta do povo
154. O pregador deve também pôr-se à escuta do povo, para descobrir
aquilo que os fiéis precisam de ouvir. Um pregador é um contemplativo da
Palavra e também um contemplativo do povo. Desta forma, descobre «as
aspirações, as riquezas e as limitações, as maneiras de orar, de amar, de
encarar a vida e o mundo, que caracterizam este ou aquele aglomerado humano»,
prestando atenção «ao povo concreto com os seus sinais e símbolos e respondendo
aos problemas que apresenta». Trata-se de relacionar a mensagem do texto
bíblico com uma situação humana, com algo que as pessoas vivem, com uma
experiência que precisa da luz da Palavra. Esta preocupação não é ditada por
uma atitude oportunista ou diplomática, mas é profundamente religiosa e
pastoral. No fundo, é uma «sensibilidade espiritual para saber ler nos
acontecimentos a mensagem de Deus», e isto é muito mais do que encontrar algo
interessante para dizer. Procura-se descobrir «o que o Senhor tem a dizer
nessas circunstâncias». Então a preparação da pregação transforma-se num
exercício de discernimento evangélico, no qual se procura reconhecer – à luz do
Espírito – «um “apelo” que Deus faz ressoar na própria situação histórica:
também nele e através dele, Deus chama o crente».
155. Nesta busca, é possível recorrer apenas a alguma experiência humana
frequente, como, por exemplo, a alegria dum reencontro, as desilusões, o medo
da solidão, a compaixão pela dor alheia, a incerteza perante o futuro, a
preocupação com um ser querido, etc.; mas faz falta intensificar a
sensibilidade para se reconhecer o que isso realmente tem a ver com a vida das
pessoas. Recordemos que nunca se deve responder a perguntas que ninguém se põe,
nem convém fazer a crónica da actualidade para despertar interesse; para isso,
já existem os programas televisivos. Em todo o caso, é possível partir de algum
facto para que a Palavra possa repercutir fortemente no seu apelo à conversão,
à adoração, a atitudes concretas de fraternidade e serviço, etc., porque
acontece, às vezes, que algumas pessoas gostam de ouvir comentários sobre a
realidade na pregação, mas nem por isso se deixam interpelar pessoalmente.
Recursos pedagógicos
156. Alguns acreditam que podem ser bons pregadores por saber o que
devem dizer, mas descuidam o como, a forma concreta de desenvolver uma
pregação. Zangam-se quando os outros não os ouvem ou não os apreciam, mas
talvez não se tenham empenhado por encontrar a forma adequada de apresentar a
mensagem. Lembremo-nos de que «a evidente importância do conteúdo da evangelização
não deve esconder a importância dos métodos e dos meios da mesma
evangelização». A preocupação com a forma de pregar também é uma atitude
profundamente espiritual. É responder ao amor de Deus, entregando-nos com todas
as nossas capacidades e criatividade à missão que Ele nos confia; mas também é
um exímio exercício de amor ao próximo, porque não queremos oferecer aos outros
algo de má qualidade. Na Bíblia, por exemplo, aparece a recomendação para se
preparar a pregação de modo a garantir uma apropriada extensão: «Sê conciso no
teu falar: muitas coisas em poucas palavras» (Sir 32, 8).
157. Apenas, para exemplificar, recordemos alguns recursos práticos que
podem enriquecer uma pregação e torná-la mais atraente. Um dos esforços mais
necessários é aprender a usar imagens na pregação, isto é, a falar por imagens.
Às vezes usam-se exemplos para tornar mais compreensível algo que se quer
explicar, mas estes exemplos frequentemente dirigem-se apenas ao entendimento,
enquanto as imagens ajudam a apreciar e acolher a mensagem que se quer
transmitir. Uma imagem fascinante faz com que se sinta a mensagem como algo
familiar, próximo, possível, relacionado com a própria vida. Uma imagem
apropriada pode levar a saborear a mensagem que se quer transmitir, desperta um
desejo e motiva a vontade na direcção do Evangelho. Uma boa homilia, como me
dizia um antigo professor, deve conter «uma ideia, um sentimento, uma imagem».
158. Já dizia Paulo VI que os fiéis «esperam muito desta pregação e dela
poderão tirar fruto, contanto que ela seja simples, clara, directa, adaptada».
A simplicidade tem a ver com a linguagem utilizada. Deve ser linguagem que os
destinatários compreendam, para não correr o risco de falar ao vento. Acontece
frequentemente que os pregadores usam palavras que aprenderam nos seus estudos
e em certos ambientes, mas que não fazem parte da linguagem comum das pessoas
que os ouvem. Há palavras próprias da teologia ou da catequese, cujo
significado não é compreensível para a maioria dos cristãos. O maior risco dum pregador
é habituar-se à sua própria linguagem e pensar que todos os outros a usam e
compreendem espontaneamente. Se se quer adaptar à linguagem dos outros, para
poder chegar até eles com a Palavra, deve-se escutar muito, é preciso partilhar
a vida das pessoas e prestar-lhes benévola atenção. A simplicidade e a clareza
são duas coisas diferentes. A linguagem pode ser muito simples, mas pouco clara
a pregação. Pode-se tornar incompreensível pela desordem, pela sua falta de
lógica, ou porque trata vários temas ao mesmo tempo. Por isso, outro cuidado
necessário é procurar que a pregação tenha unidade temática, uma ordem clara e
ligação entre as frases, de modo que as pessoas possam facilmente seguir o
pregador e captar a lógica do que lhes diz.
159. Outra característica é a linguagem positiva. Não diz tanto o que
não se deve fazer, como sobretudo propõe o que podemos fazer melhor. E, se
aponta algo negativo, sempre procura mostrar também um valor positivo que
atraia, para não se ficar pela queixa, o lamento, a crítica ou o remorso. Além
disso, uma pregação positiva oferece sempre esperança, orienta para o futuro,
não nos deixa prisioneiros da negatividade. Como é bom que sacerdotes, diáconos
e leigos se reúnam periodicamente para encontrarem, juntos, os recursos que
tornem mais atraente a pregação!
4. Uma evangelização para o aprofundamento do querigma
160. O mandato missionário do Senhor inclui o apelo ao crescimento da
fé, quando diz: «ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado» (Mt 28,
20). Daqui se vê claramente que o primeiro anúncio deve desencadear também um
caminho de formação e de amadurecimento. A evangelização procura também o
crescimento, o que implica tomar muito a sério em cada pessoa o projecto que
Deus tem para ela. Cada ser humano precisa sempre mais de Cristo, e a
evangelização não deveria deixar que alguém se contente com pouco, mas possa
dizer com plena verdade: «Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim»
(Gal 2, 20).
161. Não seria correcto que este apelo ao crescimento fosse
interpretado, exclusiva ou prioritariamente, como formação doutrinal. Trata-se
de «cumprir» aquilo que o Senhor nos indicou como resposta ao seu amor,
sobressaindo, junto com todas as virtudes, aquele mandamento novo que é o
primeiro, o maior, o que melhor nos identifica como discípulos: «É este o meu
mandamento: que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei» (Jo 15, 12). É
evidente que, quando os autores do Novo Testamento querem reduzir a mensagem
moral cristã a uma última síntese, ao mais essencial, apresentam-nos a
exigência irrenunciável do amor ao próximo: «Quem ama o próximo cumpre
plenamente a lei. (…) É no amor que está o pleno cumprimento da lei» (Rm 13,
8.10). De igual modo, São Paulo, para quem o mandamento do amor não só resume a
lei mas constitui o centro e a razão de ser da mesma: «Toda a lei se cumpre
plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo» (Gal 5, 14).
E, às suas comunidades, apresenta a vida cristã como um caminho de crescimento
no amor: «O Senhor vos faça crescer e superabundar de caridade uns para com os
outros e para com todos» (1 Ts 3, 12). Também São Tiago exorta os cristãos a
cumprir «a lei do Reino, de acordo com a Escritura: Amarás o teu próximo como a
ti mesmo» (2, 8), acabando por não citar nenhum preceito.
162. Entretanto, este caminho de resposta e crescimento aparece sempre
precedido pelo dom, porque o antecede aquele outro pedido do Senhor:
«baptizando-os em nome...» (Mt 28, 19). A adopção como filhos que o Pai oferece
gratuitamente e a iniciativa do dom da sua graça (cf. Ef 2, 8-9; 1 Cor 4, 7)
são a condição que torna possível esta santificação constante, que agrada a
Deus e Lhe dá glória. É deixar-se transformar em Cristo, vivendo
progressivamente «de acordo com o Espírito» (Rm 8, 5).
Uma catequese querigmática e mistagógica
163. A educação e a catequese estão ao serviço deste crescimento. Já
temos à disposição vários textos do Magistério e subsídios sobre a catequese,
preparados pela Santa Sé e por diversos episcopados. Lembro a Exortação
Apostólica Catechesi tradendae (1979), o Directório Geral para a Catequese
(1997) e outros documentos cujo conteúdo, sempre actual, não é necessário
repetir aqui. Queria deter-me apenas nalgumas considerações que me parece
oportuno evidenciar.
164. Voltámos a descobrir que também na catequese tem um papel
fundamental o primeiro anúncio ou querigma, que deve ocupar o centro da
actividade evangelizadora e de toda a tentativa de renovação eclesial. O
querigma é trinitário. É o fogo do Espírito que se dá sob a forma de línguas e
nos faz crer em Jesus Cristo, que, com a sua morte e ressurreição, nos revela e
comunica a misericórdia infinita do Pai. Na boca do catequista, volta a ressoar
sempre o primeiro anúncio: «Jesus Cristo ama-te, deu a sua vida para te salvar,
e agora vive contigo todos os dias para te iluminar, fortalecer, libertar». Ao
designar-se como «primeiro» este anúncio, não significa que o mesmo se situa no
início e que, em seguida, se esquece ou substitui por outros conteúdos que o
superam; é o primeiro em sentido qualitativo, porque é o anúncio principal,
aquele que sempre se tem de voltar a ouvir de diferentes maneiras e aquele que
sempre se tem de voltar a anunciar, duma forma ou doutra, durante a catequese,
em todas as suas etapas e momentos. Por isso, também «o sacerdote, como a
Igreja, deve crescer na consciência da sua permanente necessidade de ser
evangelizado».
165. Não se deve pensar que, na catequese, o querigma é deixado de lado
em favor duma formação supostamente mais «sólida». Nada há de mais sólido, mais
profundo, mais seguro, mais consistente e mais sábio que esse anúncio. Toda a
formação cristã é, primariamente, o aprofundamento do querigma que se vai, cada
vez mais e melhor, fazendo carne, que nunca deixa de iluminar a tarefa
catequética, e permite compreender adequadamente o sentido de qualquer tema que
se desenvolve na catequese. É o anúncio que dá resposta ao anseio de infinito
que existe em todo o coração humano. A centralidade do querigma requer certas
características do anúncio que hoje são necessárias em toda a parte: que
exprima o amor salvífico de Deus como prévio à obrigação moral e religiosa, que
não imponha a verdade mas faça apelo à liberdade, que seja pautado pela
alegria, o estímulo, a vitalidade e uma integralidade harmoniosa que não reduza
a pregação a poucas doutrinas, por vezes mais filosóficas que evangélicas. Isto
exige do evangelizador certas atitudes que ajudam a acolher melhor o anúncio:
proximidade, abertura ao diálogo, paciência, acolhimento cordial que não
condena.
166. Outra característica da catequese, que se desenvolveu nas últimas
décadas, é a iniciação mistagógica, que significa essencialmente duas coisas: a
necessária progressividade da experiência formativa na qual intervém toda a
comunidade e uma renovada valorização dos sinais litúrgicos da iniciação
cristã. Muitos manuais e planificações ainda não se deixaram interpelar pela
necessidade duma renovação mistagógica, que poderia assumir formas muito
diferentes de acordo com o discernimento de cada comunidade educativa. O
encontro catequético é um anúncio da Palavra e está centrado nela, mas precisa
sempre duma ambientação adequada e duma motivação atraente, do uso de símbolos
eloquentes, da sua inserção num amplo processo de crescimento e da integração
de todas as dimensões da pessoa num caminho comunitário de escuta e resposta.
167. É bom que toda a catequese preste uma especial atenção à «via da
beleza (via pulchritudinis)». Anunciar Cristo significa mostrar que crer n’Ele
e segui-Lo não é algo apenas verdadeiro e justo, mas também belo, capaz de
cumular a vida dum novo esplendor e duma alegria profunda, mesmo no meio das
provações. Nesta perspectiva, todas as expressões de verdadeira beleza podem
ser reconhecidas como uma senda que ajuda a encontrar-se com o Senhor Jesus.
Não se trata de fomentar um relativismo estético, que pode obscurecer o vínculo
indivisível entre verdade, bondade e beleza, mas de recuperar a estima da
beleza para poder chegar ao coração do homem e fazer resplandecer nele a
verdade e a bondade do Ressuscitado. Se nós, como diz Santo Agostinho, não
amamos senão o que é belo, o Filho feito homem, revelação da beleza infinita, é
sumamente amável e atrai-nos para Si com laços de amor. Por isso, torna-se
necessário que a formação na via pulchritudinis esteja inserida na transmissão
da fé. É desejável que cada Igreja particular incentive o uso das artes na sua
obra evangelizadora, em continuidade com a riqueza do passado, mas também na
vastidão das suas múltiplas expressões actuais, a fim de transmitir a fé numa
nova «linguagem parabólica». É preciso ter a coragem de encontrar os novos
sinais, os novos símbolos, uma nova carne para a transmissão da Palavra, as
diversas formas de beleza que se manifestam em diferentes âmbitos culturais,
incluindo aquelas modalidades não convencionais de beleza que podem ser pouco
significativas para os evangelizadores, mas tornaram-se particularmente
atraentes para os outros.
168. Relativamente à proposta moral da catequese, que convida a crescer
na fidelidade ao estilo de vida do Evangelho, é oportuno indicar sempre o bem
desejável, a proposta de vida, de maturidade, de realização, de fecundidade,
sob cuja luz se pode entender a nossa denúncia dos males que a podem
obscurecer. Mais do que como peritos em diagnósticos apocalípticos ou juízes
sombrios que se comprazem em detectar qualquer perigo ou desvio, é bom que nos
possam ver como mensageiros alegres de propostas altas, guardiões do bem e da
beleza que resplandecem numa vida fiel ao Evangelho.
O acompanhamento pessoal dos processos de crescimento
169. Numa civilização paradoxalmente ferida pelo anonimato e,
simultaneamente, obcecada com os detalhes da vida alheia, descaradamente doente
de morbosa curiosidade, a Igreja tem necessidade de um olhar solidário para
contemplar, comover-se e parar diante do outro, tantas vezes quantas forem
necessárias. Neste mundo, os ministros ordenados e os outros agentes de
pastoral podem tornar presente a fragrância da presença solidária de Jesus e o
seu olhar pessoal. A Igreja deverá iniciar os seus membros – sacerdotes,
religiosos e leigos – nesta «arte do acompanhamento», para que todos aprendam a
descalçar sempre as sandálias diante da terra sagrada do outro (cf. Ex 3, 5).
Devemos dar ao nosso caminhar o ritmo salutar da proximidade, com um olhar
respeitoso e cheio de compaixão, mas que ao mesmo tempo cure, liberte e anime a
amadurecer na vida cristã.
170. Embora possa soar óbvio, o acompanhamento espiritual deve conduzir
cada vez mais para Deus, em quem podemos alcançar a verdadeira liberdade.
Alguns crêem-se livres quando caminham à margem de Deus, sem se dar conta que
ficam existencialmente órfãos, desamparados, sem um lar para onde sempre possam
voltar. Deixam de ser peregrinos para se transformarem em errantes, que giram
indefinidamente ao redor de si mesmos, sem chegar a lado nenhum. O
acompanhamento seria contraproducente, caso se tornasse uma espécie de terapia
que incentive esta reclusão das pessoas na sua imanência e deixe de ser uma
peregrinação com Cristo para o Pai.
171. Hoje mais do que nunca precisamos de homens e mulheres que
conheçam, a partir da sua experiência de acompanhamento, o modo de proceder
onde reine a prudência, a capacidade de compreensão, a arte de esperar, a
docilidade ao Espírito, para no meio de todos defender as ovelhas a nós
confiadas dos lobos que tentam desgarrar o rebanho. Precisamos de nos exercitar
na arte de escutar, que é mais do que ouvir. Escutar, na comunicação com o
outro, é a capacidade do coração que torna possível a proximidade, sem a qual
não existe um verdadeiro encontro espiritual. Escutar ajuda-nos a individuar o
gesto e a palavra oportunos que nos desinstalam da cómoda condição de
espectadores. Só a partir desta escuta respeitosa e compassiva é que se pode
encontrar os caminhos para um crescimento genuíno, despertar o desejo do ideal
cristão, o anseio de corresponder plenamente ao amor de Deus e o anelo de
desenvolver o melhor de quanto Deus semeou na nossa própria vida. Mas sempre
com a paciência de quem está ciente daquilo que ensinava São Tomás de Aquino:
alguém pode ter a graça e a caridade, mas não praticar bem nenhuma das virtudes
«por causa de algumas inclinações contrárias» que persistem. Por outras
palavras, as virtudes organizam-se sempre e necessariamente «in habitu», embora
os condicionamentos possam dificultar as operações desses hábitos virtuosos.
Por isso, faz falta «uma pedagogia que introduza a pessoa passo a passo até
chegar à plena apropriação do mistério». Para se chegar a um estado de
maturidade, isto é, para que as pessoas sejam capazes de decisões
verdadeiramente livres e responsáveis, é preciso dar tempo ao tempo, com uma
paciência imensa. Como dizia o Beato Pedro Fabro: «O tempo é o mensageiro de
Deus».
172. Quem acompanha sabe reconhecer que a situação de cada pessoa diante
de Deus e a sua vida em graça é um mistério que ninguém pode conhecer
plenamente a partir do exterior. O Evangelho propõe-nos que se corrija e ajude
a crescer uma pessoa a partir do reconhecimento da maldade objectiva das suas
acções (cf. Mt 18, 15), mas sem proferir juízos sobre a sua responsabilidade e
culpabilidade (cf. Mt 7, 1; Lc 6, 37). Seja como for, um válido acompanhante
não transige com os fatalismos nem com a pusilanimidade. Sempre convida a
querer curar-se, a pegar no catre (cf. Mt 9, 6), a abraçar a cruz, a deixar
tudo e partir sem cessar para anunciar o Evangelho. A experiência pessoal de
nos deixarmos acompanhar e curar, conseguindo exprimir com plena sinceridade a
nossa vida a quem nos acompanha, ensina-nos a ser pacientes e compreensivos com
os outros e habilita-nos a encontrar as formas para despertar neles a
confiança, a abertura e a vontade de crescer.
173. O acompanhamento espiritual autêntico começa sempre e prossegue no
âmbito do serviço à missão evangelizadora. A relação de Paulo com Timóteo e
Tito é exemplo deste acompanhamento e desta formação durante a acção
apostólica. Ao mesmo tempo que lhes confia a missão de permanecer numa cidade
concreta para «acabar de organizar o que ainda falta» (Tt 1, 5; cf. 1 Tm 1,
3-5), dá-lhes os critérios para a vida pessoal e a actividade pastoral. Isto é
claramente distinto de todo o tipo de acompanhamento intimista, de
auto-realização isolada. Os discípulos missionários acompanham discípulos
missionários.
Ao redor da Palavra de Deus
174. Não é só a homilia que se deve alimentar da Palavra de Deus. Toda a
evangelização está fundada sobre esta Palavra escutada, meditada, vivida,
celebrada e testemunhada. A Sagrada Escritura é fonte da evangelização. Por
isso, é preciso formar-se continuamente na escuta da Palavra. A Igreja não
evangeliza, se não se deixa continuamente evangelizar. É indispensável que a
Palavra de Deus «se torne cada vez mais o coração de toda a actividade
eclesial». A Palavra de Deus ouvida e celebrada, sobretudo na Eucaristia,
alimenta e reforça interiormente os cristãos e torna-os capazes de um autêntico
testemunho evangélico na vida diária. Superámos já a velha contraposição entre
Palavra e Sacramento: a Palavra proclamada, viva e eficaz, prepara a recepção
do Sacramento e, no Sacramento, essa Palavra alcança a sua máxima eficácia.
175. O estudo da Sagrada Escritura deve ser uma porta aberta para todos
os crentes. É fundamental que a Palavra revelada fecunde radicalmente a
catequese e todos os esforços para transmitir a fé. A evangelização requer a
familiaridade com a Palavra de Deus, e isto exige que as dioceses, paróquias e
todos os grupos católicos proponham um estudo sério e perseverante da Bíblia e
promovam igualmente a sua leitura orante pessoal e comunitária. Nós não
procuramos Deus tacteando, nem precisamos de esperar que Ele nos dirija a
palavra, porque realmente «Deus falou, já não é o grande desconhecido, mas
mostrou-Se a Si mesmo». Acolhamos o tesouro sublime da Palavra revelada!
Capítulo IVA DIMENSÃO SOCIAL DA EVANGELIZAÇÃO
176. Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo. «Nenhuma
definição parcial e fragmentada, porém, chegará a dar razão da realidade rica,
complexa e dinâmica que é a evangelização, a não ser com o risco de a
empobrecer e até mesmo de a mutilar». Desejo agora partilhar as minhas
preocupações relacionadas com a dimensão social da evangelização, precisamente
porque, se esta dimensão não for devidamente explicitada, corre-se sempre o
risco de desfigurar o sentido autêntico e integral da missão evangelizadora.
1. As repercussões comunitárias e sociais do querigma
177. O querigma possui um conteúdo inevitavelmente social: no próprio
coração do Evangelho, aparece a vida comunitária e o compromisso com os outros.
O conteúdo do primeiro anúncio tem uma repercussão moral imediata, cujo centro
é a caridade.
Confissão da fé e compromisso social
178. Confessar um Pai que ama infinitamente cada ser humano implica
descobrir que «assim lhe confere uma dignidade infinita». Confessar que o Filho
de Deus assumiu a nossa carne humana significa que cada pessoa humana foi
elevada até ao próprio coração de Deus. Confessar que Jesus deu o seu sangue
por nós impede-nos de ter qualquer dúvida acerca do amor sem limites que
enobrece todo o ser humano. A sua redenção tem um sentido social, porque «Deus,
em Cristo, não redime somente a pessoa individual, mas também as relações
sociais entre os homens». Confessar que o Espírito Santo actua em todos implica
reconhecer que Ele procura permear toda a situação humana e todos os vínculos
sociais: «O Espírito Santo possui uma inventiva infinita, própria da mente
divina, que sabe prover a desfazer os nós das vicissitudes humanas mais complexas
e impenetráveis». A evangelização procura colaborar também com esta acção
libertadora do Espírito. O próprio mistério da Trindade nos recorda que somos
criados à imagem desta comunhão divina, pelo que não podemos realizar-nos nem
salvar-nos sozinhos. A partir do coração do Evangelho, reconhecemos a conexão
íntima que existe entre evangelização e promoção humana, que se deve
necessariamente exprimir e desenvolver em toda a acção evangelizadora. A
aceitação do primeiro anúncio, que convida a deixar-se amar por Deus e a amá-Lo
com o amor que Ele mesmo nos comunica, provoca na vida da pessoa e nas suas
acções uma primeira e fundamental reacção: desejar, procurar e ter a peito o
bem dos outros.
179. Este laço indissolúvel entre a recepção do anúncio salvífico e um
efectivo amor fraterno exprime-se nalguns textos da Escritura, que convém
considerar e meditar atentamente para tirar deles todas as consequências. É uma
mensagem a que frequentemente nos habituamos e repetimos quase mecanicamente,
mas sem nos assegurarmos de que tenha real incidência na nossa vida e nas
nossas comunidades. Como é perigoso e prejudicial este habituar-se que nos leva
a perder a maravilha, a fascinação, o entusiasmo de viver o Evangelho da
fraternidade e da justiça! A Palavra de Deus ensina que, no irmão, está o
prolongamento permanente da Encarnação para cada um de nós: «Sempre que
fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes»
(Mt 25, 40). O que fizermos aos outros, tem uma dimensão transcendente: «Com a
medida com que medirdes, assim sereis medidos» (Mt 7, 2); e corresponde à
misericórdia divina para connosco: «Sede misericordiosos como o vosso Pai é
misericordioso. Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis
condenados; perdoai, e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado (...). A medida
que usardes com os outros será usada convosco» (Lc 6, 36-38). Nestes textos,
exprime-se a absoluta prioridade da «saída de si próprio para o irmão», como um
dos dois mandamentos principais que fundamentam toda a norma moral e como o
sinal mais claro para discernir sobre o caminho de crescimento espiritual em
resposta à doação absolutamente gratuita de Deus. Por isso mesmo, «também o
serviço da caridade é uma dimensão constitutiva da missão da Igreja e expressão
irrenunciável da sua própria essência». Assim como a Igreja é missionária por
natureza, também brota inevitavelmente dessa natureza a caridade efectiva para
com o próximo, a compaixão que compreende, assiste e promove.
O Reino que nos chama
180. Ao lermos as Escrituras, fica bem claro que a proposta do Evangelho
não consiste só numa relação pessoal com Deus. E a nossa resposta de amor
também não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais
a favor de alguns indivíduos necessitados, o que poderia constituir uma
«caridade por receita», uma série de acções destinadas apenas a tranquilizar a
própria consciência. A proposta é o Reino de Deus (cf. Lc 4, 43); trata-se de
amar a Deus, que reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir reinar entre
nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de
dignidade para todos. Por isso, tanto o anúncio como a experiência cristã
tendem a provocar consequências sociais. Procuremos o seu Reino: «Procurai
primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por
acréscimo» (Mt 6, 33). O projecto de Jesus é instaurar o Reino de seu Pai; por
isso, pede aos seus discípulos: «Proclamai que o Reino do Céu está perto» (Mt
10, 7).
181. O Reino, que se antecipa e cresce entre nós, abrange tudo, como nos
recorda aquele princípio de discernimento que Paulo VI propunha a propósito do
verdadeiro desenvolvimento: «Todos os homens e o homem todo». Sabemos que «a
evangelização não seria completa, se ela não tomasse em consideração a
interpelação recíproca que se fazem constantemente o Evangelho e a vida
concreta, pessoal e social, dos homens». É o critério da universalidade,
próprio da dinâmica do Evangelho, dado que o Pai quer que todos os homens se
salvem; e o seu plano de salvação consiste em «submeter tudo a Cristo, reunindo
n’Ele o que há no céu e na terra» (Ef 1, 10). O mandato é: «Ide pelo mundo
inteiro, proclamai o Evangelho a toda criatura» (Mc 16, 15), porque toda «a
criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos
de Deus» (Rm 8, 19). Toda a criação significa também todos os aspectos da vida
humana, de tal modo que «a missão do anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo tem
destinação universal. Seu mandato de caridade alcança todas as dimensões da
existência, todas as pessoas, todos os ambientes da convivência e todos os
povos. Nada do humano pode lhe parecer estranho». A verdadeira esperança
cristã, que procura o Reino escatológico, gera sempre história.
A doutrina da Igreja sobre as questões sociais
182. Os ensinamentos da Igreja acerca de situações contingentes estão
sujeitos a maiores ou novos desenvolvimentos e podem ser objecto de discussão,
mas não podemos evitar de ser concretos – sem pretender entrar em detalhes –
para que os grandes princípios sociais não fiquem meras generalidades que não
interpelam ninguém. É preciso tirar as suas consequências práticas, para que
«possam incidir com eficácia também nas complexas situações hodiernas». Os
Pastores, acolhendo as contribuições das diversas ciências, têm o direito de
exprimir opiniões sobre tudo aquilo que diz respeito à vida das pessoas, dado
que a tarefa da evangelização implica e exige uma promoção integral de cada ser
humano. Já não se pode afirmar que a religião deve limitar-se ao âmbito privado
e serve apenas para preparar as almas para o céu. Sabemos que Deus deseja a
felicidade dos seus filhos também nesta terra, embora estejam chamados à
plenitude eterna, porque Ele criou todas as coisas «para nosso usufruto» (1 Tm
6, 17), para que todos possam usufruir delas. Por isso, a conversão cristã
exige rever «especialmente tudo o que diz respeito à ordem social e consecução
do bem comum».
183. Por conseguinte, ninguém pode exigir-nos que releguemos a religião
para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e
nacional, sem nos preocupar com a saúde das instituições da sociedade civil,
sem nos pronunciar sobre os acontecimentos que interessam aos cidadãos. Quem
ousaria encerrar num templo e silenciar a mensagem de São Francisco de Assis e
da Beata Teresa de Calcutá? Eles não o poderiam aceitar. Uma fé autêntica – que
nunca é cómoda nem individualista – comporta sempre um profundo desejo de mudar
o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa
passagem por ela. Amamos este magnífico planeta, onde Deus nos colocou, e
amamos a humanidade que o habita, com todos os seus dramas e cansaços, com os
seus anseios e esperanças, com os seus valores e fragilidades. A terra é a
nossa casa comum, e todos somos irmãos. Embora «a justa ordem da sociedade e do
Estado seja dever central da política», a Igreja «não pode nem deve ficar à
margem na luta pela justiça». Todos os cristãos, incluindo os Pastores, são
chamados a preocupar-se com a construção dum mundo melhor. É disto mesmo que se
trata, pois o pensamento social da Igreja é primariamente positivo e
construtivo, orienta uma acção transformadora e, neste sentido, não deixa de
ser um sinal de esperança que brota do coração amoroso de Jesus Cristo. Ao mesmo
tempo, «une o próprio empenho ao esforço em campo social das demais Igrejas e
Comunidades eclesiais, tanto na reflexão doutrinal como na prática».
184. Aqui não é o momento para explanar todas as graves questões sociais
que afectam o mundo actual, algumas das quais já comentei no terceiro capítulo.
Este não é um documento social e, para nos ajudar a reflectir sobre estes
vários temas, temos um instrumento muito apropriado no Compêndio da Doutrina
Social da Igreja, cujo uso e estudo vivamente recomendo. Além disso, nem o Papa
nem a Igreja possui o monopólio da interpretação da realidade social ou da
apresentação de soluções para os problemas contemporâneos. Posso repetir aqui o
que indicava, com grande lucidez, Paulo VI: «Perante situações, assim tão
diversificadas, torna-se-nos difícil tanto o pronunciar uma palavra única, como
o propor uma solução que tenha um valor universal. Mas, isso não é ambição
nossa, nem mesmo a nossa missão. É às comunidades cristãs que cabe analisarem,
com objectividade, a situação própria do seu país».
185. Em seguida, procurarei concentrar-me sobre duas grandes questões
que me parecem fundamentais neste momento da história. Desenvolvê-las-ei com
uma certa amplitude, porque considero que irão determinar o futuro da
humanidade. A primeira é a inclusão social dos pobres; e a segunda, a questão
da paz e do diálogo social.
2. A inclusão social dos pobres
186. Deriva da nossa fé em Cristo, que Se fez pobre e sempre Se
aproximou dos pobres e marginalizados, a preocupação pelo desenvolvimento
integral dos mais abandonados da sociedade.
Unidos a Deus, ouvimos um clamor
187. Cada cristão e cada comunidade são chamados a ser instrumentos de
Deus ao serviço da libertação e promoção dos pobres, para que possam
integrar-se plenamente na sociedade; isto supõe estar docilmente atentos, para
ouvir o clamor do pobre e socorrê-lo. Basta percorrer as Escrituras, para
descobrir como o Pai bom quer ouvir o clamor dos pobres: «Eu bem vi a opressão
do meu povo que está no Egipto, e ouvi o seu clamor diante dos seus
inspectores; conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci a fim de os
libertar (...). E agora, vai; Eu te envio...» (Ex 3, 7-8.10). E Ele mostra-Se
solícito com as suas necessidades: «Os filhos de Israel clamaram, então, ao
Senhor, e o Senhor enviou-lhes um salvador» (Jz 3, 15). Ficar surdo a este
clamor, quando somos os instrumentos de Deus para ouvir o pobre, coloca-nos
fora da vontade do Pai e do seu projecto, porque esse pobre «clamaria ao Senhor
contra ti, e aquilo tornar-se-ia para ti um pecado» (Dt 15, 9). E a falta de
solidariedade, nas suas necessidades, influi directamente sobre a nossa relação
com Deus: «Se te amaldiçoa na amargura da sua alma, Aquele que o criou ouvirá a
sua oração» (Sir 4, 6). Sempre retorna a antiga pergunta: «Se alguém possuir
bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu
coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele?» (1 Jo 3, 17).
Lembremos também com quanta convicção o Apóstolo São Tiago retomava a imagem do
clamor dos oprimidos: «Olhai que o salário que não pagastes, aos trabalhadores
que ceifaram os vossos campos, está a clamar; e os clamores dos ceifeiros
chegaram aos ouvidos do Senhor do universo» (5, 4).
188. A Igreja reconheceu que a exigência de ouvir este clamor deriva da
própria obra libertadora da graça em cada um de nós, pelo que não se trata de uma
missão reservada apenas a alguns: «A Igreja, guiada pelo Evangelho da
Misericórdia e pelo amor ao homem, escuta o clamor pela justiça e deseja
responder com todas as suas forças». Nesta linha, se pode entender o pedido de
Jesus aos seus discípulos: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc 6, 37), que
envolve tanto a cooperação para resolver as causas estruturais da pobreza e
promover o desenvolvimento integral dos pobres, como os gestos mais simples e
diários de solidariedade para com as misérias muito concretas que encontramos.
Embora um pouco desgastada e, por vezes, até mal interpretada, a palavra
«solidariedade» significa muito mais do que alguns actos esporádicos de
generosidade; supõe a criação duma nova mentalidade que pense em termos de
comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por
parte de alguns.
189. A solidariedade é uma reacção espontânea de quem reconhece a função
social da propriedade e o destino universal dos bens como realidades anteriores
à propriedade privada. A posse privada dos bens justifica-se para cuidar deles
e aumentá-los de modo a servirem melhor o bem comum, pelo que a solidariedade
deve ser vivida como a decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde.
Estas convicções e práticas de solidariedade, quando se fazem carne, abrem
caminho a outras transformações estruturais e tornam-nas possíveis. Uma mudança
nas estruturas, sem se gerar novas convicções e atitudes, fará com que essas
mesmas estruturas, mais cedo ou mais tarde, se tornem corruptas, pesadas e
ineficazes.
190. Às vezes trata-se de ouvir o clamor de povos inteiros, dos povos
mais pobres da terra, porque «a paz funda-se não só no respeito pelos direitos
do homem, mas também no respeito pelo direito dos povos». Lamentavelmente, até
os direitos humanos podem ser usados como justificação para uma defesa
exacerbada dos direitos individuais ou dos direitos dos povos mais ricos.
Respeitando a independência e a cultura de cada nação, é preciso recordar-se
sempre de que o planeta é de toda a humanidade e para toda a humanidade, e que
o simples facto de ter nascido num lugar com menores recursos ou menor
desenvolvimento não justifica que algumas pessoas vivam menos dignamente. É
preciso repetir que «os mais favorecidos devem renunciar a alguns dos seus direitos,
para poderem colocar, com mais liberalidade, os seus bens ao serviço dos
outros». Para falarmos adequadamente dos nossos direitos, é preciso alongar
mais o olhar e abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos ou de outras regiões
do próprio país. Precisamos de crescer numa solidariedade que «permita a todos
os povos tornarem-se artífices do seu destino», tal como «cada homem é chamado
a desenvolver-se».
191. Animados pelos seus Pastores, os cristãos são chamados, em todo o
lugar e circunstância, a ouvir o clamor dos pobres, como bem se expressaram os
Bispos do Brasil: «Desejamos assumir, a cada dia, as alegrias e esperanças, as
angústias e tristezas do povo brasileiro, especialmente das populações das
periferias urbanas e das zonas rurais – sem terra, sem teto, sem pão, sem saúde
– lesadas em seus direitos. Vendo a sua miséria, ouvindo os seus clamores e
conhecendo o seu sofrimento, escandaliza-nos o fato de saber que existe
alimento suficiente para todos e que a fome se deve à má repartição dos bens e
da renda. O problema se agrava com a prática generalizada do desperdício».
192. Mas queremos ainda mais, o nosso sonho voa mais alto. Não se fala
apenas de garantir a comida ou um decoroso «sustento» para todos, mas
«prosperidade e civilização em seus múltiplos aspectos». Isto engloba educação,
acesso aos cuidados de saúde e especialmente trabalho, porque, no trabalho
livre, criativo, participativo e solidário, o ser humano exprime e engrandece a
dignidade da sua vida. O salário justo permite o acesso adequado aos outros
bens que estão destinados ao uso comum.
Fidelidade ao Evangelho, para não correr em vão
193. Este imperativo de ouvir o clamor dos pobres faz-se carne em nós,
quando no mais íntimo de nós mesmos nos comovemos à vista do sofrimento alheio.
Voltemos a ler alguns ensinamentos da Palavra de Deus sobre a misericórdia,
para que ressoem vigorosamente na vida da Igreja. O Evangelho proclama:
«Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» (Mt 5, 7). O
Apóstolo São Tiago ensina que a misericórdia para com os outros permite-nos
sair triunfantes no juízo divino: «Falai e procedei como pessoas que hão-de ser
julgadas segundo a lei da liberdade. Porque, quem não pratica a misericórdia,
será julgado sem misericórdia. Mas a misericórdia não teme o julgamento» (2,
12-13). Neste texto, São Tiago aparece-nos como herdeiro do que tinha de mais
rico a espiritualidade judaica do pós-exílio, a qual atribuía um especial valor
salvífico à misericórdia: «Redime o teu pecado pela justiça, e as tuas iniquidades,
pela piedade para com os infelizes; talvez isto consiga prolongar a tua
prosperidade» (Dn 4, 24). Nesta mesma perspectiva, a literatura sapiencial fala
da esmola como exercício concreto da misericórdia para com os necessitados: «A
esmola livra da morte e limpa de todo o pecado» (Tb 12, 9). E de forma ainda
mais sensível se exprime Ben-Sirá: «A água apaga o fogo ardente, e a esmola
expia o pecado» (3, 30). Encontramos a mesma síntese no Novo Testamento:
«Mantende entre vós uma intensa caridade, porque o amor cobre a multidão dos
pecados» (1 Pd 4, 8). Esta verdade permeou profundamente a mentalidade dos
Padres da Igreja, tendo exercido uma resistência profética como alternativa
cultural face ao individualismo hedonista pagão. Recordemos apenas um exemplo: «Tal
como, em perigo de incêndio, correríamos a buscar água para o apagar (...), o
mesmo deveríamos fazer quando nos turvamos porque, da nossa palha, irrompeu a
chama do pecado; assim, quando se nos proporciona a ocasião de uma obra cheia
de misericórdia, alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte que nos é
oferecida e na qual podemos extinguir o incêndio».
194. É uma mensagem tão clara, tão directa, tão simples e eloquente que
nenhuma hermenêutica eclesial tem o direito de relativizar. A reflexão da Igreja
sobre estes textos não deveria ofuscar nem enfraquecer o seu sentido
exortativo, mas antes ajudar a assumi-los com coragem e ardor. Para quê
complicar o que é tão simples? As elaborações conceptuais hão-de favorecer o
contacto com a realidade que pretendem explicar, e não afastar-nos dela. Isto
vale sobretudo para as exortações bíblicas que convidam, com tanta
determinação, ao amor fraterno, ao serviço humilde e generoso, à justiça, à
misericórdia para com o pobre. Jesus ensinou-nos este caminho de reconhecimento
do outro, com as suas palavras e com os seus gestos. Para quê ofuscar o que é
tão claro? Não nos preocupemos só com não cair em erros doutrinais, mas também
com ser fiéis a este caminho luminoso de vida e sabedoria. Porque «é frequente
dirigir aos defensores da “ortodoxia” a acusação de passividade, de indulgência
ou de cumplicidade culpáveis frente a situações intoleráveis de injustiça e de
regimes políticos que mantêm estas situações».
195. Quando São Paulo foi ter com os Apóstolos a Jerusalém para
discernir «se estava a correr ou tinha corrido em vão» (Gal 2, 2), o
critério-chave de autenticidade que lhe indicaram foi que não se esquecesse dos
pobres (cf. Gal 2, 10). Este critério importante para que as comunidades
paulinas não se deixassem arrastar pelo estilo de vida individualista dos
pagãos, tem uma grande actualidade no contexto actual em que tende a
desenvolver-se um novo paganismo individualista. A própria beleza do Evangelho
nem sempre a conseguimos manifestar adequadamente, mas há um sinal que nunca
deve faltar: a opção pelos últimos, por aqueles que a sociedade descarta e
lança fora.
196. Às vezes somos duros de coração e de mente, esquecemo-nos,
entretemo-nos, extasiamo-nos com as imensas possibilidades de consumo e de
distracção que esta sociedade oferece. Gera-se assim uma espécie de alienação
que nos afecta a todos, pois «alienada é a sociedade que, nas suas formas de
organização social, de produção e de consumo, torna mais difícil a realização
deste dom e a constituição dessa solidariedade inter-humana».
O lugar privilegiado dos pobres no povo de Deus
197. No coração de Deus, ocupam lugar preferencial os pobres, tanto que
até Ele mesmo «Se fez pobre» (2 Cor 8, 9). Todo o caminho da nossa redenção
está assinalado pelos pobres. Esta salvação veio a nós, através do «sim» duma
jovem humilde, duma pequena povoação perdida na periferia dum grande império. O
Salvador nasceu num presépio, entre animais, como sucedia com os filhos dos
mais pobres; foi apresentado no Templo, juntamente com dois pombinhos, a oferta
de quem não podia permitir-se pagar um cordeiro (cf. Lc 2, 24; Lv 5, 7);
cresceu num lar de simples trabalhadores, e trabalhou com suas mãos para ganhar
o pão. Quando começou a anunciar o Reino, seguiam-No multidões de deserdados,
pondo assim em evidência o que Ele mesmo dissera: «O Espírito do Senhor está
sobre Mim, porque Me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres» (Lc 4, 18). A
quantos sentiam o peso do sofrimento, acabrunhados pela pobreza, assegurou que
Deus os tinha no âmago do seu coração: «Felizes vós, os pobres, porque vosso é
o Reino de Deus» (Lc 6, 20); e com eles Se identificou: «Tive fome e destes-Me
de comer», ensinando que a misericórdia para com eles é a chave do Céu (cf. Mt
25, 34-40).
198. Para a Igreja, a opção pelos pobres é mais uma categoria teológica
que cultural, sociológica, política ou filosófica. Deus «manifesta a sua
misericórdia antes de mais» a eles. Esta preferência divina tem consequências
na vida de fé de todos os cristãos, chamados a possuírem «os mesmos sentimentos
que estão em Cristo Jesus» (Fl 2, 5). Inspirada por tal preferência, a Igreja
fez uma opção pelos pobres, entendida como uma «forma especial de primado na
prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja». Como
ensinava Bento XVI, esta opção «está implícita na fé cristológica naquele Deus
que Se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza». Por isso,
desejo uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm muito para nos ensinar. Além
de participar do sensus fidei, nas suas próprias dores conhecem Cristo
sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles. A nova
evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas vidas, e a
colocá-los no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir Cristo
neles: não só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas, mas também a ser
seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria
que Deus nos quer comunicar através deles.
199. O nosso compromisso não consiste exclusivamente em acções ou em
programas de promoção e assistência; aquilo que o Espírito põe em movimento não
é um excesso de activismo, mas primariamente uma atenção prestada ao outro
«considerando-o como um só consigo mesmo». Esta atenção amiga é o início duma verdadeira
preocupação pela sua pessoa e, a partir dela, desejo procurar efectivamente o
seu bem. Isto implica apreciar o pobre na sua bondade própria, com o seu modo
de ser, com a sua cultura, com a sua forma de viver a fé. O amor autêntico é
sempre contemplativo, permitindo-nos servir o outro não por necessidade ou
vaidade, mas porque ele é belo, independentemente da sua aparência: «Do amor,
pelo qual uma pessoa é agradável a outra, depende que lhe dê algo de graça».
Quando amado, o pobre «é estimado como de alto valor», e isto diferencia a
autêntica opção pelos pobres de qualquer ideologia, de qualquer tentativa de
utilizar os pobres ao serviço de interesses pessoais ou políticos. Unicamente a
partir desta proximidade real e cordial é que podemos acompanhá-los
adequadamente no seu caminho de libertação. Só isto tornará possível que «os
pobres se sintam, em cada comunidade cristã, como “em casa”. Não seria, este
estilo, a maior e mais eficaz apresentação da boa nova do Reino?» Sem a opção
preferencial pelos pobres, «o anúncio do Evangelho – e este anúncio é a
primeira caridade – corre o risco de não ser compreendido ou de afogar-se
naquele mar de palavras que a actual sociedade da comunicação diariamente nos
apresenta».
200. Dado que esta Exortação se dirige aos membros da Igreja Católica,
desejo afirmar, com mágoa, que a pior discriminação que sofrem os pobres é a
falta de cuidado espiritual. A imensa maioria dos pobres possui uma especial
abertura à fé; tem necessidade de Deus e não podemos deixar de lhe oferecer a
sua amizade, a sua bênção, a sua Palavra, a celebração dos Sacramentos e a
proposta dum caminho de crescimento e amadurecimento na fé. A opção
preferencial pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude
religiosa privilegiada e prioritária.
201. Ninguém deveria dizer que se mantém longe dos pobres, porque as
suas opções de vida implicam prestar mais atenção a outras incumbências. Esta é
uma desculpa frequente nos ambientes académicos, empresariais ou profissionais,
e até mesmo eclesiais. Embora se possa dizer, em geral, que a vocação e a
missão próprias dos fiéis leigos é a transformação das diversas realidades
terrenas para que toda a actividade humana seja transformada pelo Evangelho,
ninguém pode sentir-se exonerado da preocupação pelos pobres e pela justiça
social: «A conversão espiritual, a intensidade do amor a Deus e ao próximo, o
zelo pela justiça e pela paz, o sentido evangélico dos pobres e da pobreza são
exigidos a todos». Temo que também estas palavras sejam objecto apenas de
alguns comentários, sem verdadeira incidência prática. Apesar disso, tenho
confiança na abertura e nas boas disposições dos cristãos e peço-vos que
procureis, comunitariamente, novos caminhos para acolher esta renovada
proposta.
Economia e distribuição das entradas
202. A necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza não pode
esperar; e não apenas por uma exigência pragmática de obter resultados e
ordenar a sociedade, mas também para a curar duma mazela que a torna frágil e
indigna e que só poderá levá-la a novas crises. Os planos de assistência, que
acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se apenas como
respostas provisórias. Enquanto não forem radicalmente solucionados os
problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da
especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social,
não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A
desigualdade é a raiz dos males sociais.
203. A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que
deveriam estruturar toda a política económica, mas às vezes parecem somente
apêndices adicionados de fora para completar um discurso político sem
perspectivas nem programas de verdadeiro desenvolvimento integral. Quantas palavras
se tornaram molestas para este sistema! Molesta que se fale de ética, molesta
que se fale de solidariedade mundial, molesta que se fale de distribuição dos
bens, molesta que se fale de defender os postos de trabalho, molesta que se
fale da dignidade dos fracos, molesta que se fale de um Deus que exige um
compromisso em prol da justiça. Outras vezes acontece que estas palavras se
tornam objecto duma manipulação oportunista que as desonra. A cómoda
indiferença diante destas questões esvazia a nossa vida e as nossas palavras de
todo o significado. A vocação dum empresário é uma nobre tarefa, desde que se
deixe interpelar por um sentido mais amplo da vida; isto permite-lhe servir
verdadeiramente o bem comum com o seu esforço por multiplicar e tornar os bens deste
mundo mais acessíveis a todos.
204. Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do
mercado. O crescimento equitativo exige algo mais do que o crescimento
económico, embora o pressuponha; requer decisões, programas, mecanismos e processos
especificamente orientados para uma melhor distribuição das entradas, para a
criação de oportunidades de trabalho, para uma promoção integral dos pobres que
supere o mero assistencialismo. Longe de mim propor um populismo irresponsável,
mas a economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como
quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e
criando assim novos excluídos.
205. Peço a Deus que cresça o número de políticos capazes de entrar num
autêntico diálogo que vise efectivamente sanar as raízes profundas e não a
aparência dos males do nosso mundo. A política, tão denegrida, é uma sublime
vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o bem comum.
Temos de nos convencer que a caridade «é o princípio não só das micro-relações
estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das
macro-relações como relacionamentos sociais, económicos, políticos». Rezo ao
Senhor para que nos conceda mais políticos, que tenham verdadeiramente a peito
a sociedade, o povo, a vida dos pobres. É indispensável que os governantes e o
poder financeiro levantem o olhar e alarguem as suas perspectivas, procurando
que haja trabalho digno, instrução e cuidados sanitários para todos os
cidadãos. E porque não acudirem a Deus pedindo-Lhe que inspire os seus planos?
Estou convencido de que, a partir duma abertura à transcendência, poder-se-ia
formar uma nova mentalidade política e económica que ajudaria a superar a
dicotomia absoluta entre a economia e o bem comum social.
206. A economia – como indica o próprio termo – deveria ser a arte de
alcançar uma adequada administração da casa comum, que é o mundo inteiro. Todo
o acto económico duma certa envergadura, que se realiza em qualquer parte do
planeta, repercute-se no mundo inteiro, pelo que nenhum Governo pode agir à
margem duma responsabilidade comum. Na realidade, torna-se cada vez mais
difícil encontrar soluções a nível local para as enormes contradições globais,
pelo que a política local se satura de problemas por resolver. Se realmente
queremos alcançar uma economia global saudável, precisamos, neste momento da
história, de um modo mais eficiente de interacção que, sem prejuízo da
soberania das nações, assegure o bem-estar económico a todos os países e não
apenas a alguns.
207. E qualquer comunidade da Igreja, na medida em que pretender
subsistir tranquila sem se ocupar criativamente nem cooperar de forma eficaz
para que os pobres vivam com dignidade e haja a inclusão de todos, correrá
também o risco da sua dissolução, mesmo que fale de temas sociais ou critique
os Governos. Facilmente acabará submersa pelo mundanismo espiritual,
dissimulado em práticas religiosas, reuniões infecundas ou discursos vazios.
208. Se alguém se sentir ofendido com as minhas palavras, saiba que as
exprimo com estima e com a melhor das intenções, longe de qualquer interesse
pessoal ou ideologia política. A minha palavra não é a dum inimigo nem a dum
opositor. A mim interessa-me apenas procurar que, quantos vivem escravizados
por uma mentalidade individualista, indiferente e egoísta, possam libertar-se
dessas cadeias indignas e alcancem um estilo de vida e de pensamento mais
humano, mais nobre, mais fecundo, que dignifique a sua passagem por esta terra.
Cuidar da fragilidade
209. Jesus, o evangelizador por excelência e o Evangelho em pessoa,
identificou-Se especialmente com os mais pequeninos (cf. Mt 25, 40). Isto
recorda-nos, a todos os cristãos, que somos chamados a cuidar dos mais frágeis
da Terra. Mas, no modelo «do êxito» e «individualista» em vigor, parece que não
faz sentido investir para que os lentos, fracos ou menos dotados possam também
singrar na vida.
210. Embora aparentemente não nos traga benefícios tangíveis e
imediatos, é indispensável prestar atenção e debruçar-nos sobre as novas formas
de pobreza e fragilidade, nas quais somos chamados a reconhecer Cristo
sofredor: os sem abrigo, os toxicodependentes, os refugiados, os povos
indígenas, os idosos cada vez mais sós e abandonados, etc. Os migrantes
representam um desafio especial para mim, por ser Pastor duma Igreja sem
fronteiras que se sente mãe de todos. Por isso, exorto os países a uma abertura
generosa, que, em vez de temer a destruição da identidade local, seja capaz de
criar novas sínteses culturais. Como são belas as cidades que superam a
desconfiança doentia e integram os que são diferentes, fazendo desta integração
um novo factor de progresso! Como são encantadoras as cidades que, já no seu
projecto arquitectónico, estão cheias de espaços que unem, relacionam,
favorecem o reconhecimento do outro!
211. Sempre me angustiou a situação das pessoas que são objecto das
diferentes formas de tráfico. Quem dera que se ouvisse o grito de Deus,
perguntando a todos nós: «Onde está o teu irmão?» (Gn 4, 9). Onde está o teu
irmão escravo? Onde está o irmão que estás matando cada dia na pequena fábrica
clandestina, na rede da prostituição, nas crianças usadas para a mendicidade,
naquele que tem de trabalhar às escondidas porque não foi regularizado? Não nos
façamos de distraídos! Há muita cumplicidade... A pergunta é para todos! Nas
nossas cidades, está instalado este crime mafioso e aberrante, e muitos têm as
mãos cheias de sangue devido a uma cómoda e muda cumplicidade.
212. Duplamente pobres são as mulheres que padecem situações de
exclusão, maus-tratos e violência, porque frequentemente têm menores
possibilidades de defender os seus direitos. E todavia, também entre elas,
encontramos continuamente os mais admiráveis gestos de heroísmo quotidiano na
defesa e cuidado da fragilidade das suas famílias.
213. Entre estes seres frágeis, de que a Igreja quer cuidar com
predilecção, estão também os nascituros, os mais inermes e inocentes de todos,
a quem hoje se quer negar a dignidade humana para poder fazer deles o que
apetece, tirando-lhes a vida e promovendo legislações para que ninguém o possa
impedir. Muitas vezes, para ridiculizar jocosamente a defesa que a Igreja faz
da vida dos nascituros, procura-se apresentar a sua posição como ideológica,
obscurantista e conservadora; e no entanto esta defesa da vida nascente está
intimamente ligada à defesa de qualquer direito humano. Supõe a convicção de
que um ser humano é sempre sagrado e inviolável, em qualquer situação e em cada
etapa do seu desenvolvimento. É fim em si mesmo, e nunca um meio para resolver
outras dificuldades. Se cai esta convicção, não restam fundamentos sólidos e
permanentes para a defesa dos direitos humanos, que ficariam sempre sujeitos às
conveniências contingentes dos poderosos de turno. Por si só a razão é
suficiente para se reconhecer o valor inviolável de qualquer vida humana, mas,
se a olhamos também a partir da fé, «toda a violação da dignidade pessoal do
ser humano clama por vingança junto de Deus e torna-se ofensa ao Criador do
homem».
214. E precisamente porque é uma questão que mexe com a coerência
interna da nossa mensagem sobre o valor da pessoa humana, não se deve esperar
que a Igreja altere a sua posição sobre esta questão. A propósito, quero ser
completamente honesto. Este não é um assunto sujeito a supostas reformas ou
«modernizações». Não é opção progressista pretender resolver os problemas,
eliminando uma vida humana. Mas é verdade também que temos feito pouco para
acompanhar adequadamente as mulheres que estão em situações muito duras, nas
quais o aborto lhes aparece como uma solução rápida para as suas profundas
angústias, particularmente quando a vida que cresce nelas surgiu como resultado
duma violência ou num contexto de extrema pobreza. Quem pode deixar de
compreender estas situações de tamanho sofrimento?
215. Há outros seres frágeis e indefesos, que muitas vezes ficam à mercê
dos interesses económicos ou dum uso indiscriminado. Refiro-me ao conjunto da
criação. Nós, os seres humanos, não somos meramente beneficiários, mas
guardiões das outras criaturas. Pela nossa realidade corpórea, Deus uniu-nos
tão estreitamente ao mundo que nos rodeia, que a desertificação do solo é como
uma doença para cada um, e podemos lamentar a extinção de uma espécie como se
fosse uma mutilação. Não deixemos que, à nossa passagem, fiquem sinais de
destruição e de morte que afectem a nossa vida e a das gerações futuras. Neste
sentido, faço meu o expressivo e profético lamento que, já há vários anos,
formularam os Bispos das Filipinas: «Uma incrível variedade de insectos vivia
no bosque; e estavam ocupados com todo o tipo de tarefas. (...) Os pássaros
voavam pelo ar, as suas penas brilhantes e os seus variados gorjeios
acrescentavam cor e melodia ao verde dos bosques. (...) Deus quis que esta
terra fosse para nós, suas criaturas especiais, mas não para a podermos
destruir ou transformar num baldio. (...) Depois de uma única noite de chuva,
observa os rios de castanho-chocolate da tua localidade e lembra-te que estão a
arrastar o sangue vivo da terra para o mar. (...) Como poderão os peixes nadar
em esgotos como o rio Pasig e muitos outros rios que poluímos? Quem transformou
o maravilhoso mundo marinho em cemitérios subaquáticos despojados de vida e de
cor?»
216. Pequenos mas fortes no amor de Deus, como São Francisco de Assis,
todos nós, cristãos, somos chamados a cuidar da fragilidade do povo e do mundo
em que vivemos.
3. O bem comum e a paz social
217. Falámos muito sobre a alegria e o amor, mas a Palavra de Deus
menciona também o fruto da paz (cf. Gal 5, 22).
218. A paz social não pode ser entendida como irenismo ou como mera
ausência de violência obtida pela imposição de uma parte sobre as outras.
Também seria uma paz falsa aquela que servisse como desculpa para justificar
uma organização social que silencie ou tranquilize os mais pobres, de modo que
aqueles que gozam dos maiores benefícios possam manter o seu estilo de vida sem
sobressaltos, enquanto os outros sobrevivem como podem. As reivindicações
sociais, que têm a ver com a distribuição das entradas, a inclusão social dos
pobres e os direitos humanos não podem ser sufocados com o pretexto de
construir um consenso de escritório ou uma paz efémera para uma minoria feliz.
A dignidade da pessoa humana e o bem comum estão por cima da tranquilidade de
alguns que não querem renunciar aos seus privilégios. Quando estes valores são
afectados, é necessária uma voz profética.
219. E a paz também «não se reduz a uma ausência de guerra, fruto do
equilíbrio sempre precário das forças. Constrói-se, dia a dia, na busca duma
ordem querida por Deus, que traz consigo uma justiça mais perfeita entre os
homens». Enfim, uma paz que não surja como fruto do desenvolvimento integral de
todos, não terá futuro e será sempre semente de novos conflitos e variadas
formas de violência.
220. Em cada nação, os habitantes desenvolvem a dimensão social da sua
vida, configurando-se como cidadãos responsáveis dentro de um povo e não como
massa arrastada pelas forças dominantes. Lembremo-nos que «ser cidadão fiel é
uma virtude, e a participação na vida política é uma obrigação moral». Mas,
tornar-se um povo é algo mais, exigindo um processo constante no qual cada nova
geração está envolvida. É um trabalho lento e árduo que exige querer
integrar-se e aprender a fazê-lo até se desenvolver uma cultura do encontro
numa harmonia pluriforme.
221. Para avançar nesta construção de um povo em paz, justiça e
fraternidade, há quatro princípios relacionados com tensões bipolares próprias
de toda a realidade social. Derivam dos grandes postulados da Doutrina Social
da Igreja, que constituem o «primeiro e fundamental parâmetro de referência
para a interpretação e o exame dos fenómenos sociais». À luz deles, desejo
agora propor estes quatro princípios que orientam especificamente o
desenvolvimento da convivência social e a construção de um povo onde as
diferenças se harmonizam dentro de um projecto comum. Faço-o na convicção de
que a sua aplicação pode ser um verdadeiro caminho para a paz dentro de cada
nação e no mundo inteiro.
O tempo é superior ao espaço
222. Existe uma tensão bipolar entre a plenitude e o limite. A plenitude
gera a vontade de possuir tudo, e o limite é o muro que nos aparece pela
frente. O «tempo», considerado em sentido amplo, faz referimento à plenitude
como expressão do horizonte que se abre diante de nós, e o momento é expressão
do limite que se vive num espaço circunscrito. Os cidadãos vivem em tensão
entre a conjuntura do momento e a luz do tempo, do horizonte maior, da utopia
que nos abre ao futuro como causa final que atrai. Daqui surge um primeiro
princípio para progredir na construção de um povo: o tempo é superior ao
espaço.
223. Este princípio permite trabalhar a longo prazo, sem a obsessão
pelos resultados imediatos. Ajuda a suportar, com paciência, situações difíceis
e hostis ou as mudanças de planos que o dinamismo da realidade impõe. É um
convite a assumir a tensão entre plenitude e limite, dando prioridade ao tempo.
Um dos pecados que, às vezes, se nota na actividade sociopolítica é privilegiar
os espaços de poder em vez dos tempos dos processos. Dar prioridade ao espaço
leva-nos a proceder como loucos para resolver tudo no momento presente, para
tentar tomar posse de todos os espaços de poder e autoafirmação. É cristalizar
os processos e pretender pará-los. Dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com
iniciar processos do que possuir espaços. O tempo ordena os espaços, ilumina-os
e transforma-os em elos duma cadeia em constante crescimento, sem marcha atrás.
Trata-se de privilegiar as acções que geram novos dinamismos na sociedade e
comprometem outras pessoas e grupos que os desenvolverão até frutificar em
acontecimentos históricos importantes. Sem ansiedade, mas com convicções claras
e tenazes.
224. Às vezes interrogo-me sobre quais são as pessoas que, no mundo
actual, se preocupam realmente mais com gerar processos que construam um povo
do que com obter resultados imediatos que produzam ganhos políticos fáceis,
rápidos e efémeros, mas que não constroem a plenitude humana. A história
julgá-los-á talvez com aquele critério enunciado por Romano Guardini: «O único
padrão para avaliar justamente uma época é perguntar-se até que ponto, nela, se
desenvolve e alcança uma autêntica razão de ser a plenitude da existência
humana, de acordo com o carácter peculiar e as possibilidades da dita época».
225. Este critério é muito apropriado também para a evangelização, que
exige ter presente o horizonte, adoptar os processos possíveis e a estrada
longa. O próprio Senhor, na sua vida mortal, deu a entender várias vezes aos
seus discípulos que havia coisas que ainda não podiam compreender e era necessário
esperar o Espírito Santo (cf. Jo 16, 12-13). A parábola do trigo e do joio (cf.
Mt 13, 24-30) descreve um aspecto importante de evangelização que consiste em
mostrar como o inimigo pode ocupar o espaço do Reino e causar dano com o joio,
mas é vencido pela bondade do trigo que se manifesta com o tempo.
A unidade prevalece sobre o conflito
226. O conflito não pode ser ignorado ou dissimulado; deve ser aceitado.
Mas, se ficamos encurralados nele, perdemos a perspectiva, os horizontes
reduzem-se e a própria realidade fica fragmentada. Quando paramos na conjuntura
conflitual, perdemos o sentido da unidade profunda da realidade.
227. Perante o conflito, alguns limitam-se a olhá-lo e passam adiante
como se nada fosse, lavam-se as mãos para poder continuar com a sua vida.
Outros entram de tal maneira no conflito que ficam prisioneiros, perdem o
horizonte, projectam nas instituições as suas próprias confusões e
insatisfações e, assim, a unidade torna-se impossível. Mas há uma terceira
forma, a mais adequada, de enfrentar o conflito: é aceitar suportar o conflito,
resolvê-lo e transformá-lo no elo de ligação de um novo processo. «Felizes os
pacificadores» (Mt 5, 9)!
228. Deste modo, torna-se possível desenvolver uma comunhão nas
diferenças, que pode ser facilitada só por pessoas magnânimas que têm a coragem
de ultrapassar a superfície conflitual e consideram os outros na sua dignidade
mais profunda. Por isso, é necessário postular um princípio que é indispensável
para construir a amizade social: a unidade é superior ao conflito. A
solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo e desafiador, torna-se
assim um estilo de construção da história, um âmbito vital onde os conflitos,
as tensões e os opostos podem alcançar uma unidade multifacetada que gera nova
vida. Não é apostar no sincretismo ou na absorção de um no outro, mas na
resolução num plano superior que conserva em si as preciosas potencialidades
das polaridades em contraste.
229. Este critério evangélico recorda-nos que Cristo tudo unificou em
Si: céu e terra, Deus e homem, tempo e eternidade, carne e espírito, pessoa e
sociedade. O sinal distintivo desta unidade e reconciliação de tudo n’Ele é a
paz. Cristo «é a nossa paz» (Ef 2, 14). O anúncio do Evangelho começa sempre
com a saudação de paz; e a paz coroa e cimenta em cada momento as relações
entre os discípulos. A paz é possível, porque o Senhor venceu o mundo e sua
permanente conflitualidade, «pacificando pelo sangue da sua cruz» (Col 1, 20).
Entretanto, se examinarmos a fundo estes textos bíblicos, descobriremos que o
primeiro âmbito onde somos chamados a conquistar esta pacificação nas
diferenças é a própria interioridade, a própria vida sempre ameaçada pela
dispersão dialéctica. Com corações despedaçados em milhares de fragmentos, será
difícil construir uma verdadeira paz social.
230. O anúncio de paz não é a proclamação duma paz negociada, mas a
convicção de que a unidade do Espírito harmoniza todas as diversidades. Supera
qualquer conflito numa nova e promissora síntese. A diversidade é bela, quando
aceita entrar constantemente num processo de reconciliação até selar uma
espécie de pacto cultural que faça surgir uma «diversidade reconciliada», como
justamente ensinaram os Bispos da República Democrática do Congo: «A
diversidade das nossas etnias é uma riqueza. (…) Só com a unidade, a conversão
dos corações e a reconciliação é que poderemos fazer avançar o nosso país».
A realidade é mais importante do que a ideia
231. Existe também uma tensão bipolar entre a ideia e a realidade: a
realidade simplesmente é, a ideia elabora-se. Entre as duas, deve
estabelecer-se um diálogo constante, evitando que a ideia acabe por separar-se
da realidade. É perigoso viver no reino só da palavra, da imagem, do sofisma.
Por isso, há que postular um terceiro princípio: a realidade é superior à
ideia. Isto supõe evitar várias formas de ocultar a realidade: os purismos
angélicos, os totalitarismos do relativo, os nominalismos declaracionistas, os
projectos mais formais que reais, os fundamentalismos anti-históricos, os
eticismos sem bondade, os intelectualismos sem sabedoria.
232. A ideia – as elaborações conceituais – está ao serviço da captação,
compreensão e condução da realidade. A ideia desligada da realidade dá origem a
idealismos e nominalismos ineficazes que, no máximo, classificam ou definem,
mas não empenham. O que empenha é a realidade iluminada pelo raciocínio. É
preciso passar do nominalismo formal à objectividade harmoniosa. Caso
contrário, manipula-se a verdade, do mesmo modo que se substitui a ginástica
pela cosmética. Há políticos – e também líderes religiosos – que se interrogam
por que motivo o povo não os compreende nem segue, se as suas propostas são tão
lógicas e claras. Possivelmente é porque se instalaram no reino das puras
ideias e reduziram a política ou a fé à retórica; outros esqueceram a
simplicidade e importaram de fora uma racionalidade alheia à gente.
233. A realidade é superior à ideia. Este critério está ligado à
encarnação da Palavra e ao seu cumprimento: «Reconheceis que o espírito é de
Deus por isto: todo o espírito que confessa Jesus Cristo que veio em carne
mortal é de Deus». (1 Jo 4, 2). O critério da realidade, duma Palavra já
encarnada e sempre procurando encarnar-se, é essencial à evangelização. Por um
lado, leva-nos a valorizar a história da Igreja como história de salvação, a
recordar os nossos Santos que inculturaram o Evangelho na vida dos nossos
povos, a recolher a rica tradição bimilenária da Igreja, sem pretender elaborar
um pensamento desligado deste tesouro como se quiséssemos inventar o Evangelho.
Por outro lado, este critério impele-nos a pôr em prática a Palavra, a realizar
obras de justiça e caridade nas quais se torne fecunda esta Palavra. Não pôr em
prática, não levar à realidade a Palavra é construir sobre a areia, permanecer
na pura ideia e degenerar em intimismos e gnosticismos que não dão fruto, que
esterilizam o seu dinamismo.
O todo é superior à parte
234. Entre a globalização e a localização também se gera uma tensão. É
preciso prestar atenção à dimensão global para não cair numa mesquinha
quotidianidade. Ao mesmo tempo convém não perder de vista o que é local, que
nos faz caminhar com os pés por terra. As duas coisas unidas impedem de cair em
algum destes dois extremos: o primeiro, que os cidadãos vivam num universalismo
abstracto e globalizante, miméticos passageiros do carro de apoio, admirando os
fogos de artifício do mundo, que é de outros, com a boca aberta e aplausos
programados; o outro extremo é que se transformem num museu folclórico de
eremitas localistas, condenados a repetir sempre as mesmas coisas, incapazes de
se deixar interpelar pelo que é diverso e de apreciar a beleza que Deus espalha
fora das suas fronteiras.
235. O todo é mais do que a parte, sendo também mais do que a simples
soma delas. Portanto, não se deve viver demasiado obcecados por questões
limitadas e particulares. É preciso alargar sempre o olhar para reconhecer um
bem maior que trará benefícios a todos nós. Mas há que o fazer sem se evadir
nem se desenraizar. É necessário mergulhar as raízes na terra fértil e na
história do próprio lugar, que é um dom de Deus. Trabalha-se no pequeno, no que
está próximo, mas com uma perspectiva mais ampla. Da mesma forma, uma pessoa
que conserva a sua peculiaridade pessoal e não esconde a sua identidade, quando
se integra cordialmente numa comunidade não se aniquila, mas recebe sempre
novos estímulos para o seu próprio desenvolvimento. Não é a esfera global que
aniquila, nem a parte isolada que esteriliza.
236. Aqui o modelo não é a esfera, pois não é superior às partes e,
nela, cada ponto é equidistante do centro, não havendo diferenças entre um
ponto e o outro. O modelo é o poliedro, que reflecte a confluência de todas as
partes que nele mantêm a sua originalidade. Tanto a acção pastoral como a acção
política procuram reunir nesse poliedro o melhor de cada um. Ali entram os
pobres com a sua cultura, os seus projectos e as suas próprias potencialidades.
Até mesmo as pessoas que possam ser criticadas pelos seus erros, têm algo a
oferecer que não se deve perder. É a união dos povos, que, na ordem universal,
conservam a sua própria peculiaridade; é a totalidade das pessoas numa
sociedade que procura um bem comum que verdadeiramente incorpore a todos.
237. A nós, cristãos, este princípio fala-nos também da totalidade ou
integridade do Evangelho que a Igreja nos transmite e envia a pregar. A sua
riqueza plena incorpora académicos e operários, empresários e artistas,
incorpora todos. A «mística popular» acolhe, a seu modo, o Evangelho inteiro e
encarna-o em expressões de oração, de fraternidade, de justiça, de luta e de
festa. A Boa Nova é a alegria dum Pai que não quer que se perca nenhum dos seus
pequeninos. Assim nasce a alegria no Bom Pastor que encontra a ovelha perdida e
a reintegra no seu rebanho. O Evangelho é fermento que leveda toda a massa e
cidade que brilha no cimo do monte, iluminando todos os povos. O Evangelho
possui um critério de totalidade que lhe é intrínseco: não cessa de ser Boa
Nova enquanto não for anunciado a todos, enquanto não fecundar e curar todas as
dimensões do homem, enquanto não unir todos os homens à volta da mesa do Reino.
O todo é superior à parte.
4. O diálogo social como contribuição para a paz
238. A evangelização implica também um caminho de diálogo. Neste
momento, existem sobretudo três campos de diálogo onde a Igreja deve estar
presente, cumprindo um serviço a favor do pleno desenvolvimento do ser humano e
procurando o bem comum: o diálogo com os Estados, com a sociedade – que inclui
o diálogo com as culturas e as ciências – e com os outros crentes que não fazem
parte da Igreja Católica. Em todos os casos, «a Igreja fala a partir da luz que
a fé lhe dá», oferece a sua experiência de dois mil anos e conserva sempre na
memória as vidas e sofrimentos dos seres humanos. Isto ultrapassa a razão
humana, mas também tem um significado que pode enriquecer a quantos não crêem e
convida a razão a alargar as suas perspectivas.
239. A Igreja proclama o «evangelho da paz» (Ef 6, 15) e está aberta à
colaboração com todas as autoridades nacionais e internacionais para cuidar
deste bem universal tão grande. Ao anunciar Jesus Cristo, que é a paz em pessoa
(cf. Ef 2, 14), a nova evangelização incentiva todo o baptizado a ser
instrumento de pacificação e testemunha credível duma vida reconciliada. É hora
de saber como projectar, numa cultura que privilegie o diálogo como forma de
encontro, a busca de consenso e de acordos mas sem a separar da preocupação por
uma sociedade justa, capaz de memória e sem exclusões. O autor principal, o
sujeito histórico deste processo, é a gente e a sua cultura, não uma classe,
uma fracção, um grupo, uma elite. Não precisamos de um projecto de poucos para poucos,
ou de uma minoria esclarecida ou testemunhal que se aproprie de um sentimento
colectivo. Trata-se de um acordo para viver juntos, de um pacto social e
cultural.
240. O cuidado e a promoção do bem comum da sociedade compete ao Estado.
Este, com base nos princípios de subsidiariedade e solidariedade e com um
grande esforço de diálogo político e criação de consensos, desempenha um papel
fundamental – que não pode ser delegado – na busca do desenvolvimento integral
de todos. Este papel exige, nas circunstâncias actuais, uma profunda humildade
social.
241. No diálogo com o Estado e com a sociedade, a Igreja não tem
soluções para todas as questões específicas. Mas, juntamente com as várias
forças sociais, acompanha as propostas que melhor correspondam à dignidade da
pessoa humana e ao bem comum. Ao fazê-lo, propõe sempre com clareza os valores
fundamentais da existência humana, para transmitir convicções que possam depois
traduzir-se em acções políticas.
O diálogo entre a fé, a razão e as ciências
242. O diálogo entre ciência e fé também faz parte da acção
evangelizadora que favorece a paz. O cientificismo e o positivismo recusam-se a
«admitir, como válidas, formas de conhecimento distintas daquelas que são
próprias das ciências positivas». A Igreja propõe outro caminho, que exige uma
síntese entre um uso responsável das metodologias próprias das ciências
empíricas e os outros saberes como a filosofia, a teologia, e a própria fé que
eleva o ser humano até ao mistério que transcende a natureza e a inteligência humana.
A fé não tem medo da razão; pelo contrário, procura-a e tem confiança nela,
porque «a luz da razão e a luz da fé provêm ambas de Deus», e não se podem
contradizer entre si. A evangelização está atenta aos progressos científicos
para os iluminar com a luz da fé e da lei natural, tendo em vista procurar que
sempre respeitem a centralidade e o valor supremo da pessoa humana em todas as
fases da sua existência. Toda a sociedade pode ser enriquecida através deste
diálogo que abre novos horizontes ao pensamento e amplia as possibilidades da
razão. Também este é um caminho de harmonia e pacificação.
243. A Igreja não pretende deter o progresso admirável das ciências.
Pelo contrário, alegra-se e inclusivamente desfruta reconhecendo o enorme
potencial que Deus deu à mente humana. Quando o progresso das ciências,
mantendo-se com rigor académico no campo do seu objecto específico, torna
evidente uma determinada conclusão que a razão não pode negar, a fé não a
contradiz. Nem os crentes podem pretender que uma opinião científica que lhes
agrada – e que nem sequer foi suficientemente comprovada – adquira o peso dum
dogma de fé. Em certas ocasiões, porém, alguns cientistas vão mais além do
objecto formal da sua disciplina e exageram com afirmações ou conclusões que extravasam
o campo da própria ciência. Neste caso, não é a razão que se propõe, mas uma
determinada ideologia que fecha o caminho a um diálogo autêntico, pacífico e
frutuoso.
O diálogo ecuménico
244. O compromisso ecuménico corresponde à oração do Senhor Jesus
pedindo «que todos sejam um só» (Jo 17, 21). A credibilidade do anúncio cristão
seria muito maior, se os cristãos superassem as suas divisões e a Igreja
realizasse «a plenitude da catolicidade que lhe é própria naqueles filhos que,
embora incorporados pelo Baptismo, estão separados da sua plena comunhão».
Devemos sempre lembrar-nos de que somos peregrinos, e peregrinamos juntos. Para
isso, devemos abrir o coração ao companheiro de estrada sem medos nem
desconfianças, e olhar primariamente para o que procuramos: a paz no rosto do
único Deus. O abrir-se ao outro tem algo de artesanal, a paz é artesanal. Jesus
disse-nos: «Felizes os pacificadores» (Mt 5, 9). Neste esforço, mesmo entre
nós, cumpre-se a antiga profecia: «Transformarão as suas espadas em relhas de
arado» (Is 2, 4).
245. Sob esta luz, o ecumenismo é uma contribuição para a unidade da
família humana. A presença no Sínodo do Patriarca de Constantinopla, Sua
Santidade Bartolomeu I, e do Arcebispo de Cantuária, Sua Graça Rowan Douglas
Williams, foi um verdadeiro dom de Deus e um precioso testemunho cristão.
246. Dada a gravidade do contra-testemunho da divisão entre cristãos,
sobretudo na Ásia e na África, torna-se urgente a busca de caminhos de unidade.
Os missionários, nesses continentes, referem repetidamente as críticas, queixas
e sarcasmos que recebem por causa do escândalo dos cristãos divididos. Se nos
concentrarmos nas convicções que nos unem e recordarmos o princípio da
hierarquia das verdades, poderemos caminhar decididamente para formas comuns de
anúncio, de serviço e de testemunho. A imensa multidão que não recebeu o
anúncio de Jesus Cristo não pode deixar-nos indiferentes. Por isso, o esforço
por uma unidade que facilite a recepção de Jesus Cristo deixa de ser mera
diplomacia ou um dever forçado para se transformar num caminho imprescindível
da evangelização. Os sinais de divisão entre cristãos, em países que já estão
dilacerados pela violência, juntam outros motivos de conflito vindos da parte
de quem deveria ser um activo fermento de paz. São tantas e tão valiosas as
coisas que nos unem! E, se realmente acreditamos na acção livre e generosa do
Espírito, quantas coisas podemos aprender uns dos outros! Não se trata apenas
de receber informações sobre os outros para os conhecermos melhor, mas de
recolher o que o Espírito semeou neles como um dom também para nós. Só para dar
um exemplo, no diálogo com os irmãos ortodoxos, nós, os católicos, temos a
possibilidade de aprender algo mais sobre o significado da colegialidade
episcopal e sobre a sua experiência da sinodalidade. Através dum intercâmbio de
dons, o Espírito pode conduzir-nos cada vez mais para a verdade e o bem.
As relações com o Judaísmo
247. Um olhar muito especial é dirigido ao povo judeu, cuja Aliança com
Deus nunca foi revogada, porque «os dons e o chamamento de Deus são
irrevogáveis» (Rm 11, 29). A Igreja, que partilha com o Judaísmo uma parte
importante das Escrituras Sagradas, considera o povo da Aliança e a sua fé como
uma raiz sagrada da própria identidade cristã (cf. Rm 11, 16-18). Como
cristãos, não podemos considerar o Judaísmo como uma religião alheia, nem
incluímos os judeus entre quantos são chamados a deixar os ídolos para se
converter ao verdadeiro Deus (cf. 1 Ts 1, 9). Juntamente com eles, acreditamos
no único Deus que actua na história, e acolhemos, com eles, a
Palavra revelada comum.
248. O diálogo e a amizade com os filhos de Israel fazem parte da vida
dos discípulos de Jesus. O afecto que se desenvolveu leva-nos a lamentar,
sincera e amargamente, as terríveis perseguições de que foram e são objecto,
particularmente aquelas que envolvem ou envolveram cristãos.
249. Deus continua a operar no povo da Primeira Aliança e faz nascer
tesouros de sabedoria que brotam do seu encontro com a Palavra divina. Por
isso, a Igreja também se enriquece quando recolhe os valores do Judaísmo.
Embora algumas convicções cristãs sejam inaceitáveis para o Judaísmo e a Igreja
não possa deixar de anunciar Jesus como Senhor e Messias, há uma rica
complementaridade que nos permite ler juntos os textos da Bíblia hebraica e
ajudar-nos mutuamente a desentranhar as riquezas da Palavra, bem como
compartilhar muitas convicções éticas e a preocupação comum pela justiça e o
desenvolvimento dos povos.
O diálogo inter-religioso
250. Uma atitude de abertura na verdade e no amor deve caracterizar o
diálogo com os crentes das religiões não-cristãs, apesar dos vários obstáculos
e dificuldades, de modo particular os fundamentalismos de ambos os lados. Este
diálogo inter-religioso é uma condição necessária para a paz no mundo e, por
conseguinte, é um dever para os cristãos e também para outras comunidades
religiosas. Este diálogo é, em primeiro lugar, uma conversa sobre a vida humana
ou simplesmente – como propõem os Bispos da Índia – «estar aberto a eles,
compartilhando as suas alegrias e penas». Assim aprendemos a aceitar os outros,
na sua maneira diferente de ser, de pensar e de se exprimir. Com este método,
poderemos assumir juntos o dever de servir a justiça e a paz, que deverá
tornar-se um critério básico de todo o intercâmbio. Um diálogo, no qual se
procurem a paz e a justiça social, é em si mesmo, para além do aspecto
meramente pragmático, um compromisso ético que cria novas condições sociais. Os
esforços à volta dum tema específico podem transformar-se num processo em que,
através da escuta do outro, ambas as partes encontram purificação e
enriquecimento. Portanto, estes esforços também podem ter o significado de amor
à verdade.
251. Neste diálogo, sempre amável e cordial, nunca se deve descuidar o
vínculo essencial entre diálogo e anúncio, que leva a Igreja a manter e
intensificar as relações com os não-cristãos. Um sincretismo conciliador seria,
no fundo, um totalitarismo de quantos pretendem conciliar prescindindo de
valores que os transcendem e dos quais não são donos. A verdadeira abertura
implica conservar-se firme nas próprias convicções mais profundas, com uma
identidade clara e feliz, mas «disponível para compreender as do outro» e
«sabendo que o diálogo pode enriquecer a ambos». Não nos serve uma abertura
diplomática que diga sim a tudo para evitar problemas, porque seria um modo de
enganar o outro e negar-lhe o bem que se recebeu como um dom para partilhar com
generosidade. Longe de se contraporem, a evangelização e o diálogo
inter-religioso apoiam-se e alimentam-se reciprocamente.
252. Neste tempo, adquire grande importância a relação com os crentes do
Islão, hoje particularmente presentes em muitos países de tradição cristã, onde
podem celebrar livremente o seu culto e viver integrados na sociedade. Não se
deve jamais esquecer que eles «professam seguir a fé de Abraão, e connosco
adoram o Deus único e misericordioso, que há-de julgar os homens no último
dia». Os escritos sagrados do Islão conservam parte dos ensinamentos cristãos;
Jesus Cristo e Maria são objecto de profunda veneração e é admirável ver como
jovens e idosos, mulheres e homens do Islão são capazes de dedicar diariamente
tempo à oração e participar fielmente nos seus ritos religiosos. Ao mesmo
tempo, muitos deles têm uma profunda convicção de que a própria vida, na sua
totalidade, é de Deus e para Deus. Reconhecem também a necessidade de Lhe
responder com um compromisso ético e com a misericórdia para com os mais
pobres.
253. Para sustentar o diálogo com o Islão é indispensável a adequada formação
dos interlocutores, não só para que estejam sólida e jubilosamente radicados na
sua identidade, mas também para que sejam capazes de reconhecer os valores dos
outros, compreender as preocupações que subjazem às suas reivindicações e fazer
aparecer as convicções comuns. Nós, cristãos, deveríamos acolher com afecto e
respeito os imigrantes do Islão que chegam aos nossos países, tal como
esperamos e pedimos para ser acolhidos e respeitados nos países de tradição
islâmica. Rogo, imploro humildemente a esses países que assegurem liberdade aos
cristãos para poderem celebrar o seu culto e viver a sua fé, tendo em conta a
liberdade que os crentes do Islão gozam nos países ocidentais. Frente a
episódios de fundamentalismo violento que nos preocupam, o afecto pelos
verdadeiros crentes do Islão deve levar-nos a evitar odiosas generalizações,
porque o verdadeiro Islão e uma interpretação adequada do Alcorão opõem-se a
toda a violência.
254. Os não-cristãos fiéis à sua consciência podem, por gratuita
iniciativa divina, viver «justificados por meio da graça de Deus» e, assim,
«associados ao mistério pascal de Jesus Cristo». Devido, porém, à dimensão
sacramental da graça santificante, a acção divina neles tende a produzir
sinais, ritos, expressões sagradas que, por sua vez, envolvem outros numa
experiência comunitária do caminho para Deus. Não têm o significado e a
eficácia dos Sacramentos instituídos por Cristo, mas podem ser canais que o
próprio Espírito suscita para libertar os não-cristãos do imanentismo ateu ou de
experiências religiosas meramente individuais. O mesmo Espírito suscita por
toda a parte diferentes formas de sabedoria prática que ajudam a suportar as
carências da vida e a viver com mais paz e harmonia. Nós, cristãos, podemos
tirar proveito também desta riqueza consolidada ao longo dos séculos, que nos
pode ajudar a viver melhor as nossas próprias convicções.
O diálogo social num contexto de liberdade religiosa
255. Os Padres sinodais lembraram a importância do respeito pela
liberdade religiosa, considerada um direito humano fundamental. Inclui «a
liberdade de escolher a religião que se crê ser verdadeira e de manifestar
publicamente a própria crença». Um são pluralismo, que respeite verdadeiramente
aqueles que pensam diferente e os valorizem como tais, não implica uma
privatização das religiões, com a pretensão de as reduzir ao silêncio e à
obscuridade da consciência de cada um ou à sua marginalização no recinto fechado
das igrejas, sinagogas ou mesquitas. Tratar-se-ia, em definitivo, de uma nova
forma de discriminação e autoritarismo. O respeito devido às minorias de
agnósticos ou de não-crentes não se deve impor de maneira arbitrária que
silencie as convicções de maiorias crentes ou ignore a riqueza das tradições
religiosas. No fundo, isso fomentaria mais o ressentimento do que a tolerância
e a paz.
256. Ao questionar-se sobre a incidência pública da religião, é preciso
distinguir diferentes modos de a viver. Tanto os intelectuais como os
jornalistas caem, frequentemente, em generalizações grosseiras e pouco
académicas, quando falam dos defeitos das religiões e, muitas vezes, não são
capazes de distinguir que nem todos os crentes – nem todos os líderes religiosos
– são iguais. Alguns políticos aproveitam esta confusão para justificar acções
discriminatórias. Outras vezes, desprezam-se os escritos que surgiram no âmbito
duma convicção crente, esquecendo que os textos religiosos clássicos podem
oferecer um significado para todas as épocas, possuem uma força motivadora que
abre sempre novos horizontes, estimula o pensamento, engrandece a mente e a
sensibilidade. São desprezados pela miopia dos racionalismos. Será razoável e
inteligente relegá-los para a obscuridade, só porque nasceram no contexto duma
crença religiosa? Contêm princípios profundamente humanistas que possuem um
valor racional, apesar de estarem permeados de símbolos e doutrinas religiosos.
257. Como crentes, sentimo-nos próximo também de todos aqueles que, não
se reconhecendo parte de qualquer tradição religiosa, buscam sinceramente a
verdade, a bondade e a beleza, que, para nós, têm a sua máxima expressão e a
sua fonte em Deus. Sentimo-los como preciosos aliados no compromisso pela
defesa da dignidade humana, na construção duma convivência pacífica entre os
povos e na guarda da criação. Um espaço peculiar é o dos chamados novos
Areópagos, como o «Átrio dos Gentios», onde «crentes e não-crentes podem
dialogar sobre os temas fundamentais da ética, da arte e da ciência, e sobre a
busca da transcendência». Também este é um caminho de paz para o nosso mundo
ferido.
258. A partir de alguns temas sociais, importantes para o futuro da
humanidade, procurei explicitar uma vez mais a incontornável dimensão social do
anúncio do Evangelho, para encorajar todos os cristãos a manifestá-la sempre
nas suas palavras, atitudes e acções.
Capítulo VEVANGELIZADORES COM ESPÍRITO
259. Evangelizadores com espírito quer dizer evangelizadores que se
abrem sem medo à acção do Espírito Santo. No Pentecostes, o Espírito faz os
Apóstolos saírem de si mesmos e transforma-os em anunciadores das maravilhas de
Deus, que cada um começa a entender na própria língua. Além disso, o Espírito
Santo infunde a força para anunciar a novidade do Evangelho com ousadia
(parresia), em voz alta e em todo o tempo e lugar, mesmo contra-corrente.
Invoquemo-Lo hoje, bem apoiados na oração, sem a qual toda a acção corre o
risco de ficar vã e o anúncio, no fim de contas, carece de alma. Jesus quer
evangelizadores que anunciem a Boa Nova, não só com palavras mas sobretudo com
uma vida transfigurada pela presença de Deus.
260. Neste último capítulo, não vou oferecer uma síntese da
espiritualidade cristã, nem desenvolverei grandes temas como a oração, a
adoração eucarística ou a celebração da fé, sobre os quais já possuímos
preciosos textos do Magistério e escritos célebres de grandes autores. Não
pretendo substituir nem superar tanta riqueza. Limitar-me-ei simplesmente a
propor algumas reflexões acerca do espírito da nova evangelização.
261. Quando se diz de uma realidade que tem «espírito», indica-se
habitualmente uma moção interior que impele, motiva, encoraja e dá sentido à
acção pessoal e comunitária. Uma evangelização com espírito é muito diferente
de um conjunto de tarefas vividas como uma obrigação pesada, que quase não se
tolera ou se suporta como algo que contradiz as nossas próprias inclinações e
desejos. Como gostaria de encontrar palavras para encorajar uma estação
evangelizadora mais ardorosa, alegre, generosa, ousada, cheia de amor até ao
fim e feita de vida contagiante! Mas sei que nenhuma motivação será suficiente,
se não arde nos corações o fogo do Espírito. Em suma, uma evangelização com
espírito é uma evangelização com o Espírito Santo, já que Ele é a alma da
Igreja evangelizadora. Antes de propor algumas motivações e sugestões
espirituais, invoco uma vez mais o Espírito Santo; peço-Lhe que venha renovar,
sacudir, impelir a Igreja numa decidida saída para fora de si mesma a fim de
evangelizar todos os povos.
1. Motivações para um renovado impulso missionário
262. Evangelizadores com espírito quer dizer evangelizadores que rezam e
trabalham. Do ponto de vista da evangelização, não servem as propostas místicas
desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário, nem os discursos e
acções sociais e pastorais sem uma espiritualidade que transforme o coração.
Estas propostas parciais e desagregadoras alcançam só pequenos grupos e não têm
força de ampla penetração, porque mutilam o Evangelho. É preciso cultivar
sempre um espaço interior que dê sentido cristão ao compromisso e à actividade.
Sem momentos prolongados de adoração, de encontro orante com a Palavra, de
diálogo sincero com o Senhor, as tarefas facilmente se esvaziam de significado,
quebrantamo-nos com o cansaço e as dificuldades, e o ardor apaga-se. A Igreja
não pode dispensar o pulmão da oração, e alegra-me imenso que se multipliquem,
em todas as instituições eclesiais, os grupos de oração, de intercessão, de
leitura orante da Palavra, as adorações perpétuas da Eucaristia. Ao mesmo
tempo, «há que rejeitar a tentação duma espiritualidade intimista e
individualista, que dificilmente se coaduna com as exigências da caridade, com
a lógica da encarnação». Há o risco de que alguns momentos de oração se tornem
uma desculpa para evitar de dedicar a vida à missão, porque a privatização do
estilo de vida pode levar os cristãos a refugiarem-se nalguma falsa
espiritualidade.
263. É salutar recordar-se dos primeiros cristãos e de tantos irmãos ao
longo da história que se mantiveram transbordantes de alegria, cheios de
coragem, incansáveis no anúncio e capazes de uma grande resistência activa. Há
quem se console, dizendo que hoje é mais difícil; temos, porém, de reconhecer
que o contexto do Império Romano não era favorável ao anúncio do Evangelho, nem
à luta pela justiça, nem à defesa da dignidade humana. Em cada momento da
história, estão presentes a fraqueza humana, a busca doentia de si mesmo, a
comodidade egoísta e, enfim, a concupiscência que nos ameaça a todos. Isto está
sempre presente, sob uma roupagem ou outra; deriva mais da limitação humana que
das circunstâncias. Por isso, não digamos que hoje é mais difícil; é diferente.
Em vez disso, aprendamos com os Santos que nos precederam e enfrentaram as dificuldades
próprias do seu tempo. Com esta finalidade, proponho-vos que nos detenhamos a
recuperar algumas motivações que nos ajudem a imitá-los nos nossos dias.
O encontro pessoal com o amor de Jesus que nos salva
264. A primeira motivação para evangelizar é o amor que recebemos de
Jesus, aquela experiência de sermos salvos por Ele que nos impele a amá-Lo cada
vez mais. Com efeito, um amor que não sentisse a necessidade de falar da pessoa
amada, de a apresentar, de a tornar conhecida, que amor seria? Se não sentimos
o desejo intenso de comunicar Jesus, precisamos de nos deter em oração para Lhe
pedir que volte a cativar-nos. Precisamos de o implorar cada dia, pedir a sua
graça para que abra o nosso coração frio e sacuda a nossa vida tíbia e
superficial. Colocados diante d’Ele com o coração aberto, deixando que Ele nos
olhe, reconhecemos aquele olhar de amor que descobriu Natanael no dia em que
Jesus Se fez presente e lhe disse: «Eu vi-te, quando estavas debaixo da
figueira!» (Jo 1, 48). Como é doce permanecer diante dum crucifixo ou de
joelhos diante do Santíssimo Sacramento, e fazê-lo simplesmente para estar à
frente dos seus olhos! Como nos faz bem deixar que Ele volte a tocar a nossa
vida e nos envie para comunicar a sua vida nova! Sucede então que, em última
análise, «o que nós vimos e ouvimos, isso anunciamos» (1 Jo 1, 3). A melhor
motivação para se decidir a comunicar o Evangelho é contemplá-lo com amor, é
deter-se nas suas páginas e lê-lo com o coração. Se o abordamos desta maneira,
a sua beleza deslumbra-nos, volta a cativar-nos vezes sem conta. Por isso, é
urgente recuperar um espírito contemplativo, que nos permita redescobrir, cada
dia, que somos depositários dum bem que humaniza, que ajuda a levar uma vida
nova. Não há nada de melhor para transmitir aos outros.
265. Toda a vida de Jesus, a sua forma de tratar os pobres, os seus
gestos, a sua coerência, a sua generosidade simples e quotidiana e, finalmente,
a sua total dedicação, tudo é precioso e fala à nossa vida pessoal. Todas as
vezes que alguém volta a descobri-lo, convence-se de que é isso mesmo o que os
outros precisam, embora não o saibam: «Aquele que venerais sem O conhecer, é
Esse que eu vos anuncio» (Act 17, 23). Às vezes perdemos o entusiasmo pela
missão, porque esquecemos que o Evangelho dá resposta às necessidades mais
profundas das pessoas, porque todos fomos criados para aquilo que o Evangelho
nos propõe: a amizade com Jesus e o amor fraterno. Quando se consegue exprimir,
de forma adequada e bela, o conteúdo essencial do Evangelho, de certeza que
essa mensagem fala aos anseios mais profundos do coração: «O missionário está
convencido de que existe já, nas pessoas e nos povos, pela acção do Espírito,
uma ânsia – mesmo se inconsciente – de conhecer a verdade acerca de Deus, do
homem, do caminho que conduz à liberação do pecado e da morte. O entusiasmo
posto no anúncio de Cristo deriva da convicção de responder a tal ânsia».
O entusiasmo na evangelização funda-se nesta convicção. Temos à
disposição um tesouro de vida e de amor que não pode enganar, a mensagem que
não pode manipular nem desiludir. É uma resposta que desce ao mais fundo do ser
humano e pode sustentá-lo e elevá-lo. É a verdade que não passa de moda, porque
é capaz de penetrar onde nada mais pode chegar. A nossa tristeza infinita só se
cura com um amor infinito.
266. Esta convicção, porém, é sustentada com a experiência pessoal,
constantemente renovada, de saborear a sua amizade e a sua mensagem. Não se
pode perseverar numa evangelização cheia de ardor, se não se está convencido,
por experiência própria, que não é a mesma coisa ter conhecido Jesus ou não O
conhecer, não é a mesma coisa caminhar com Ele ou caminhar tacteando, não é a
mesma coisa poder escutá-Lo ou ignorar a sua Palavra, não é a mesma coisa poder
contemplá-Lo, adorá-Lo, descansar n’Ele ou não o poder fazer. Não é a mesma
coisa procurar construir o mundo com o seu Evangelho em vez de o fazer
unicamente com a própria razão. Sabemos bem que a vida com Jesus se torna muito
mais plena e, com Ele, é mais fácil encontrar o sentido para cada coisa. É por
isso que evangelizamos. O verdadeiro missionário, que não deixa jamais de ser
discípulo, sabe que Jesus caminha com ele, fala com ele, respira com ele,
trabalha com ele. Sente Jesus vivo com ele, no meio da tarefa missionária. Se uma
pessoa não O descobre presente no coração mesmo da entrega missionária,
depressa perde o entusiasmo e deixa de estar seguro do que transmite,
faltam-lhe força e paixão. E uma pessoa que não está convencida, entusiasmada,
segura, enamorada, não convence ninguém.
267. Unidos a Jesus, procuramos o que Ele procura, amamos o que Ele ama.
Em última instância, o que procuramos é a glória do Pai, vivemos e agimos «para
que seja prestado louvor à glória da sua graça» (Ef 1, 6). Se queremos
entregar-nos a sério e com perseverança, esta motivação deve superar toda e
qualquer outra. O movente definitivo, o mais profundo, o maior, a razão e o
sentido último de tudo o resto é este: a glória do Pai que Jesus procurou
durante toda a sua existência. Ele é o Filho eternamente feliz, com todo o seu
ser «no seio do Pai» (Jo 1, 18). Se somos missionários, antes de tudo é porque
Jesus nos disse: «A glória do meu Pai [consiste] em que deis muito fruto» (Jo
15, 8). Independentemente de que nos convenha, interesse, aproveite ou não,
para além dos estreitos limites dos nossos desejos, da nossa compreensão e das
nossas motivações, evangelizamos para a maior glória do Pai que nos ama.
O prazer espiritual de ser povo
268. A Palavra de Deus convida-nos também a reconhecer que somos povo:
«Vós que outrora não éreis um povo, agora sois povo de Deus» (1 Pd 2, 10). Para
ser evangelizadores com espírito é preciso também desenvolver o prazer
espiritual de estar próximo da vida das pessoas, até chegar a descobrir que
isto se torna fonte duma alegria superior. A missão é uma paixão por Jesus, e
simultaneamente uma paixão pelo seu povo. Quando paramos diante de Jesus
crucificado, reconhecemos todo o seu amor que nos dignifica e sustenta, mas lá
também, se não formos cegos, começamos a perceber que este olhar de Jesus se
alonga e dirige, cheio de afecto e ardor, a todo o seu povo. Lá descobrimos
novamente que Ele quer servir-Se de nós para chegar cada vez mais perto do seu
povo amado. Toma-nos do meio do povo e envia-nos ao povo, de tal modo que a nossa
identidade não se compreende sem esta pertença.
269. O próprio Jesus é o modelo desta opção evangelizadora que nos
introduz no coração do povo. Como nos faz bem vê-Lo perto de todos! Se falava
com alguém, fitava os seus olhos com uma profunda solicitude cheia de amor:
«Jesus, fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele» (Mc 10, 21). Vemo-Lo
disponível ao encontro, quando manda aproximar-se o cego do caminho (cf. Mc 10,
46-52) e quando come e bebe com os pecadores (cf. Mc 2, 16), sem Se importar
que O chamem de glutão e beberrão (cf. Mt 11, 19). Vemo-Lo disponível, quando
deixa uma prostituta ungir-Lhe os pés (cf. Lc 7, 36-50) ou quando recebe, de
noite, Nicodemos (cf. Jo 3, 1-21). A entrega de Jesus na cruz é apenas o
culminar deste estilo que marcou toda a sua vida. Fascinados por este modelo,
queremos inserir-nos a fundo na sociedade, partilhamos a vida com todos,
ouvimos as suas preocupações, colaboramos material e espiritualmente nas suas
necessidades, alegramo-nos com os que estão alegres, choramos com os que choram
e comprometemo-nos na construção de um mundo novo, lado a lado com os outros.
Mas não por obrigação, nem como um peso que nos desgasta, mas como uma opção
pessoal que nos enche de alegria e nos dá uma identidade.
270. Às vezes sentimos a tentação de ser cristãos, mantendo uma prudente
distância das chagas do Senhor. Mas Jesus quer que toquemos a miséria humana,
que toquemos a carne sofredora dos outros. Espera que renunciemos a procurar
aqueles abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do
nó do drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contacto com
a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos,
a vida complica-se sempre maravilhosamente e vivemos a intensa experiência de
ser povo, a experiência de pertencer a um povo.
271. É verdade que, na nossa relação com o mundo, somos convidados a dar
razão da nossa esperança, mas não como inimigos que apontam o dedo e condenam.
A advertência é muito clara: fazei-o «com mansidão e respeito» (1 Pd 3, 16) e
«tanto quanto for possível e de vós dependa, vivei em paz com todos os homens»
(Rm 12, 18). E somos incentivados também a vencer «o mal com o bem» (Rm 12,
21), sem nos cansarmos de «fazer o bem» (Gal 6, 9) e sem pretendermos aparecer
como superiores, antes «considerai os outros superiores a vós próprios» (Fl 2,
3). Na realidade, os Apóstolos do Senhor «tinham a simpatia de todo o povo»
(Act 2, 47; cf. 4, 21.33; 5, 13). Está claro que Jesus não nos quer como
príncipes que olham desdenhosamente, mas como homens e mulheres do povo. Esta
não é a opinião de um Papa, nem uma opção pastoral entre várias possíveis; são
indicações da Palavra de Deus tão claras, directas e contundentes, que não
precisam de interpretações que as despojariam da sua força interpeladora.
Vivamo-las sine glossa, sem comentários. Assim, experimentaremos a alegria
missionária de partilhar a vida com o povo fiel de Deus, procurando acender o
fogo no coração do mundo.
272. O amor às pessoas é uma força espiritual que favorece o encontro em
plenitude com Deus, a ponto de se dizer, de quem não ama o irmão, que «está nas
trevas e nas trevas caminha» (1 Jo 2, 11), «permanece na morte» (1 Jo 3, 14) e
«não chegou a conhecer a Deus» (1 Jo 4, 8). Bento XVI disse que «fechar os
olhos diante do próximo torna cegos também diante de Deus», e que o amor é
fundamentalmente a única luz que «ilumina incessantemente um mundo às escuras e
nos dá a coragem de viver e agir». Portanto, quando vivemos a mística de nos
aproximar dos outros com a intenção de procurar o seu bem, ampliamos o nosso
interior para receber os mais belos dons do Senhor. Cada vez que nos
encontramos com um ser humano no amor, ficamos capazes de descobrir algo de
novo sobre Deus. Cada vez que os nossos olhos se abrem para reconhecer o outro,
ilumina-se mais a nossa fé para reconhecer a Deus. Em consequência disto, se
queremos crescer na vida espiritual, não podemos renunciar a ser missionários.
A tarefa da evangelização enriquece a mente e o coração, abre-nos horizontes
espirituais, torna-nos mais sensíveis para reconhecer a acção do Espírito,
faz-nos sair dos nossos esquemas espirituais limitados. Ao mesmo tempo, um
missionário plenamente devotado ao seu trabalho experimenta o prazer de ser um
manancial que transborda e refresca os outros. Só pode ser missionário quem se
sente bem procurando o bem do próximo, desejando a felicidade dos outros. Esta
abertura do coração é fonte de felicidade, porque «a felicidade está mais em
dar do que em receber» (Act 20, 35). Não se vive melhor fugindo dos outros,
escondendo-se, negando-se a partilhar, resistindo a dar, fechando-se na
comodidade. Isto não é senão um lento suicídio.
273. A missão no coração do povo não é uma parte da minha vida, ou um
ornamento que posso pôr de lado; não é um apêndice ou um momento entre tantos
outros da minha vida. É algo que não posso arrancar do meu ser, se não me quero
destruir. Eu sou uma missão nesta terra, e para isso estou neste mundo. É
preciso considerarmo-nos como que marcados a fogo por esta missão de iluminar,
abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar. Nisto se revela a enfermeira
autêntica , o professor autêntico, o político autêntico, aqueles que decidiram,
no mais íntimo do seu ser, estar com os outros e ser para os outros. Mas, se uma
pessoa coloca a tarefa dum lado e a vida privada do outro, tudo se torna
cinzento e viverá continuamente à procura de reconhecimentos ou defendendo as
suas próprias exigências. Deixará de ser povo.
274. Para partilhar a vida com a gente e dar-nos generosamente,
precisamos de reconhecer também que cada pessoa é digna da nossa dedicação. E
não pelo seu aspecto físico, suas capacidades, sua linguagem, sua mentalidade
ou pelas satisfações que nos pode dar, mas porque é obra de Deus, criatura sua.
Ele criou-a à sua imagem, e reflecte algo da sua glória. Cada ser humano é
objecto da ternura infinita do Senhor, e Ele mesmo habita na sua vida. Na cruz,
Jesus Cristo deu o seu sangue precioso por essa pessoa. Independentemente da
aparência, cada um é imensamente sagrado e merece o nosso afecto e a nossa
dedicação. Por isso, se consigo ajudar uma só pessoa a viver melhor, isso já
justifica o dom da minha vida. É maravilhoso ser povo fiel de Deus. E ganhamos
plenitude, quando derrubamos os muros e o coração se enche de rostos e de
nomes!
A acção misteriosa do Ressuscitado e do seu Espírito
275. No terceiro capítulo, reflectimos sobre a carência de
espiritualidade profunda que se traduz no pessimismo, no fatalismo, na
desconfiança. Algumas pessoas não se dedicam à missão, porque crêem que nada
pode mudar e assim, segundo elas, é inútil esforçar-se. Pensam: «Para quê
privar-me das minhas comodidades e prazeres, se não vejo algum resultado
importante?» Com esta mentalidade, torna-se impossível ser missionário. Esta
atitude é precisamente uma desculpa maligna para continuar fechado na própria
comodidade, na preguiça, na tristeza insatisfeita, no vazio egoísta. Trata-se
de uma atitude autodestrutiva, porque «o homem não pode viver sem esperança: a
sua vida, condenada à insignificância, tornar-se-ia insuportável». No caso de
pensarmos que as coisas não vão mudar, recordemos que Jesus Cristo triunfou
sobre o pecado e a morte e possui todo o poder. Jesus Cristo vive
verdadeiramente. Caso contrário, «se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa
pregação» (1 Cor 15, 14). Diz-nos o Evangelho que, quando os primeiros
discípulos saíram a pregar, «o Senhor cooperava com eles, confirmando a
Palavra» (Mc 16, 20). E o mesmo acontece hoje. Somos convidados a descobri-lo,
a vivê-lo. Cristo ressuscitado e glorioso é a fonte profunda da nossa
esperança, e não nos faltará a sua ajuda para cumprir a missão que nos confia.
276. A sua ressurreição não é algo do passado; contém uma força de vida
que penetrou o mundo. Onde parecia que tudo morreu, voltam a aparecer por todo
o lado os rebentos da ressurreição. É uma força sem igual. É verdade que muitas
vezes parece que Deus não existe: vemos injustiças, maldades, indiferenças e
crueldades que não cedem. Mas também é certo que, no meio da obscuridade, sempre
começa a desabrochar algo de novo que, mais cedo ou mais tarde, produz fruto.
Num campo arrasado, volta a aparecer a vida, tenaz e invencível. Haverá muitas
coisas más, mas o bem sempre tende a reaparecer e espalhar-se. Cada dia, no
mundo, renasce a beleza, que ressuscita transformada através dos dramas da
história. Os valores tendem sempre a reaparecer sob novas formas, e na
realidade o ser humano renasceu muitas vezes de situações que pareciam
irreversíveis. Esta é a força da ressurreição, e cada evangelizador é um
instrumento deste dinamismo.
277. E continuamente aparecem também novas dificuldades, a experiência
do fracasso, as mesquinhices humanas que tanto ferem. Todos sabemos, por
experiência, que às vezes uma tarefa não nos dá as satisfações que
desejaríamos, os frutos são escassos e as mudanças são lentas, e vem-nos a
tentação de se dar por cansado. Todavia, não é a mesma coisa quando alguém, por
cansaço, baixa momentaneamente os braços e quando os baixa definitivamente
dominado por um descontentamento crónico, por uma acédia que lhe mirra a alma.
Pode acontecer que o coração se canse de lutar, porque, em última análise, se
busca a si mesmo num carreirismo sedento de reconhecimentos, aplausos, prémios,
promoções; então a pessoa não baixa os braços, mas já não tem garra, carece de
ressurreição. Assim, o Evangelho, que é a mensagem mais bela que há neste
mundo, fica sepultado sob muitas desculpas.
278. A fé significa também acreditar n’Ele, acreditar que nos ama
verdadeiramente, que está vivo, que é capaz de intervir misteriosamente, que
não nos abandona, que tira bem do mal com o seu poder e a sua criatividade
infinita. Significa acreditar que Ele caminha vitorioso na história «e, com
Ele, estarão os chamados, os escolhidos, os fiéis» (Ap 17, 14). Acreditamos no
Evangelho que diz que o Reino de Deus já está presente no mundo, e vai-se
desenvolvendo-se aqui e além de várias maneiras: como a pequena semente que
pode chegar a transformar-se numa grande árvore (cf. Mt 13, 31-32), como o
punhado de fermento que leveda uma grande massa (cf. Mt 13, 33), e como a boa
semente que cresce no meio do joio (cf. Mt 13, 24-30) e sempre nos pode
surpreender positivamente: ei-la que aparece, vem outra vez, luta para
florescer de novo. A ressurreição de Cristo produz por toda a parte rebentos
deste mundo novo; e, ainda que os cortem, voltam a despontar, porque a
ressurreição do Senhor já penetrou a trama oculta desta história; porque Jesus
não ressuscitou em vão. Não fiquemos à margem desta marcha da esperança viva!
279. Como nem sempre vemos estes rebentos, precisamos de uma certeza
interior, ou seja, da convicção de que Deus pode actuar em qualquer
circunstância, mesmo no meio de aparentes fracassos, porque «trazemos este
tesouro em vasos de barro» (2 Cor 4, 7). Esta certeza é o que se chama «sentido
de mistério», que consiste em saber, com certeza, que a pessoa que se oferece e
entrega a Deus por amor, seguramente será fecunda (cf. Jo 15, 5). Muitas vezes
esta fecundidade é invisível, incontrolável, não pode ser contabilizada. A
pessoa sabe com certeza que a sua vida dará frutos, mas sem pretender conhecer
como, onde ou quando; está segura de que não se perde nenhuma das suas obras
feitas com amor, não se perde nenhuma das suas preocupações sinceras com os
outros, não se perde nenhum acto de amor a Deus, não se perde nenhuma das suas
generosas fadigas, não se perde nenhuma dolorosa paciência. Tudo isto circula
pelo mundo como uma força de vida. Às vezes invade-nos a sensação de não termos
obtido resultado algum com os nossos esforços, mas a missão não é um negócio nem
um projecto empresarial, nem mesmo uma organização humanitária, não é um
espectáculo para que se possa contar quantas pessoas assistiram devido à nossa
propaganda. É algo de muito mais profundo, que escapa a toda e qualquer medida.
Talvez o Senhor Se sirva da nossa entrega para derramar bênçãos noutro lugar do
mundo, aonde nunca iremos. O Espírito Santo trabalha como quer, quando quer e
onde quer; e nós gastamo-nos com grande dedicação, mas sem pretender ver
resultados espectaculares. Sabemos apenas que o dom de nós mesmos é necessário.
No meio da nossa entrega criativa e generosa, aprendamos a descansar na ternura
dos braços do Pai. Continuemos para diante, empenhemo-nos totalmente, mas
deixemos que seja Ele a tornar fecundos, como melhor Lhe parecer, os nossos
esforços.
280. Para manter vivo o ardor missionário, é necessária uma decidida
confiança no Espírito Santo, porque Ele «vem em auxílio da nossa fraqueza» (Rm
8, 26). Mas esta confiança generosa tem de ser alimentada e, para isso,
precisamos de O invocar constantemente. Ele pode curar-nos de tudo o que nos
faz esmorecer no compromisso missionário. É verdade que esta confiança no
invisível pode causar-nos alguma vertigem: é como mergulhar num mar onde não
sabemos o que vamos encontrar. Eu mesmo o experimentei tantas vezes. Mas não há
maior liberdade do que a de se deixar conduzir pelo Espírito, renunciando a
calcular e controlar tudo e permitindo que Ele nos ilumine, guie, dirija e
impulsione para onde Ele quiser. O Espírito Santo bem sabe o que faz falta em
cada época e em cada momento. A isto chama-se ser misteriosamente fecundos!
A força missionária da intercessão
281. Há uma forma de oração que nos incentiva particularmente a
gastarmo-nos na evangelização e nos motiva a procurar o bem dos outros: é a
intercessão. Fixemos, por momentos, o íntimo dum grande evangelizador como São
Paulo, para perceber como era a sua oração. Esta estava repleta de seres
humanos: «Em todas as minhas orações, sempre peço com alegria por todos vós
(...), pois tenho-vos no coração» (Fl 1, 4.7). Descobrimos, assim, que
interceder não nos afasta da verdadeira contemplação, porque a contemplação que
deixa de fora os outros é uma farsa.
282. Esta atitude transforma-se também num agradecimento a Deus pelos
outros. «Antes de mais, dou graças ao meu Deus por todos vós, por meio de Jesus
Cristo» (Rm 1, 8). Trata-se de um agradecimento constante: «Dou incessantemente
graças ao meu Deus por vós, pela graça de Deus que vos foi concedida em Cristo
Jesus» (1 Cor 1, 4); «todas as vezes que me lembro de vós, dou graças ao meu
Deus» (Fl 1, 3). Não é um olhar incrédulo, negativo e sem esperança, mas uma
visão espiritual, de fé profunda, que reconhece aquilo que o próprio Deus faz
neles. E, simultaneamente, é a gratidão que brota de um coração verdadeiramente
solícito pelos outros. Deste modo, quando um evangelizador sai da oração, o seu
coração tornou-se mais generoso, libertou-se da consciência isolada e está
ansioso por fazer o bem e partilhar a vida com os outros.
283. Os grandes homens e mulheres de Deus foram grandes intercessores. A
intercessão é como «fermento» no seio da Santíssima Trindade. É penetrarmos no
Pai e descobrirmos novas dimensões que iluminam as situações concretas e as
mudam. Poderíamos dizer que o coração de Deus se deixa comover pela
intercessão, mas na realidade Ele sempre nos antecipa, pelo que, com a nossa
intercessão, apenas possibilitamos que o seu poder, o seu amor e a sua lealdade
se manifestem mais claramente no povo.
2. Maria, a Mãe da evangelização
284. Juntamente com o Espírito Santo, sempre está Maria no meio do povo.
Ela reunia os discípulos para O invocarem (Act 1, 14), e assim tornou possível
a explosão missionária que se deu no Pentecostes. Ela é a Mãe da Igreja
evangelizadora e, sem Ela, não podemos compreender cabalmente o espírito da
nova evangelização.
O dom de Jesus ao seu povo
285. Na cruz, quando Cristo suportava em sua carne o dramático encontro
entre o pecado do mundo e a misericórdia divina, pôde ver a seus pés a presença
consoladora da Mãe e do amigo. Naquele momento crucial, antes de declarar
consumada a obra que o Pai Lhe havia confiado, Jesus disse a Maria: «Mulher,
eis o teu filho!» E, logo a seguir, disse ao amigo bem-amado: «Eis a tua mãe!»
(Jo 19, 26-27). Estas palavras de Jesus, no limiar da morte, não exprimem
primariamente uma terna preocupação por sua Mãe; mas são, antes, uma fórmula de
revelação que manifesta o mistério duma missão salvífica especial. Jesus
deixava-nos a sua Mãe como nossa Mãe. E só depois de fazer isto é que Jesus
pôde sentir que «tudo se consumara» (Jo 19, 28). Ao pé da cruz, na hora suprema
da nova criação, Cristo conduz-nos a Maria; conduz-nos a Ela, porque não quer
que caminhemos sem uma mãe; e, nesta imagem materna, o povo lê todos os
mistérios do Evangelho. Não é do agrado do Senhor que falte à sua Igreja o
ícone feminino. Ela, que O gerou com tanta fé, também acompanha «o resto da sua
descendência, isto é, os que observam os mandamentos de Deus e guardam o
testemunho de Jesus» (Ap 12, 17). Esta ligação íntima entre Maria, a Igreja e
cada fiel, enquanto de maneira diversa geram Cristo, foi maravilhosamente
expressa pelo Beato Isaac da Estrela: «Nas Escrituras divinamente inspiradas, o
que se atribui em geral à Igreja, Virgem e Mãe, aplica-se em especial à Virgem
Maria (...). Alem disso, cada alma fiel é igualmente, a seu modo, esposa do
Verbo de Deus, mãe de Cristo, filha e irmã, virgem e mãe fecunda. (...) No
tabernáculo do ventre de Maria, Cristo habitou durante nove meses; no
tabernáculo da fé da Igreja, permanecerá até ao fim do mundo; no conhecimento e
amor da alma fiel habitará pelos séculos dos séculos».
286. Maria é aquela que sabe transformar um curral de animais na casa de
Jesus, com uns pobres paninhos e uma montanha de ternura. Ela é a serva humilde
do Pai, que transborda de alegria no louvor. É a amiga sempre solícita para que
não falte o vinho na nossa vida. É aquela que tem o coração trespassado pela
espada, que compreende todas as penas. Como Mãe de todos, é sinal de esperança
para os povos que sofrem as dores do parto até que germine a justiça. Ela é a
missionária que Se aproxima de nós, para nos acompanhar ao longo da vida,
abrindo os corações à fé com o seu afecto materno. Como uma verdadeira mãe,
caminha connosco, luta connosco e aproxima-nos incessantemente do amor de Deus.
Através dos diferentes títulos marianos, geralmente ligados aos santuários,
compartilha as vicissitudes de cada povo que recebeu o Evangelho e entra a
formar parte da sua identidade histórica. Muitos pais cristãos pedem o Baptismo
para seus filhos num santuário mariano, manifestando assim a fé na acção
materna de Maria que gera novos filhos para Deus. É lá, nos santuários, que se
pode observar como Maria reúne ao seu redor os filhos que, com grandes
sacrifícios, vêm peregrinos para A ver e deixar-se olhar por Ela. Lá encontram
a força de Deus para suportar os sofrimentos e as fadigas da vida. Como a São
João Diego, Maria oferece-lhes a carícia da sua consolação materna e diz-lhes:
«Não se perturbe o teu coração. (...) Não estou aqui eu, que sou tua Mãe?»
A Estrela da nova evangelização
287. À Mãe do Evangelho vivente, pedimos a sua intercessão a fim de que
este convite para uma nova etapa da evangelização seja acolhido por toda a
comunidade eclesial. Ela é a mulher de fé, que vive e caminha na fé, e «a sua
excepcional peregrinação da fé representa um ponto de referência constante para
a Igreja». Ela deixou-Se conduzir pelo Espírito, através dum itinerário de fé,
rumo a uma destinação feita de serviço e fecundidade. Hoje fixamos n’Ela o olhar,
para que nos ajude a anunciar a todos a mensagem de salvação e para que os
novos discípulos se tornem operosos evangelizadores. Nesta peregrinação
evangelizadora, não faltam as fases de aridez, de ocultação e até de um certo
cansaço, como as que viveu Maria nos anos de Nazaré enquanto Jesus crescia:
«Este é o início do Evangelho, isto é, da boa nova, da jubilosa nova. Não é
difícil, porém, perceber naquele início um particular aperto do coração, unido
a uma espécie de “noite da fé” – para usar as palavras de São João da Cruz –
como que um “véu” através do qual é forçoso aproximar-se do Invisível e viver
na intimidade com o mistério. Foi deste modo efectivamente que Maria, durante
muitos anos, permaneceu na intimidade com o mistério do seu Filho, e avançou no
seu itinerário de fé».
288. Há um estilo mariano na actividade evangelizadora da Igreja. Porque
sempre que olhamos para Maria, voltamos a acreditar na força revolucionária da
ternura e do afecto. N’Ela, vemos que a humildade e a ternura não são virtudes
dos fracos, mas dos fortes, que não precisam de maltratar os outros para se
sentir importantes. Fixando-A, descobrimos que aquela que louvava a Deus porque
«derrubou os poderosos de seus tronos» e «aos ricos despediu de mãos vazias»
(Lc 1, 52.53) é mesma que assegura o aconchego dum lar à nossa busca de
justiça. E é a mesma também que conserva cuidadosamente «todas estas coisas
ponderando-as no seu coração» (Lc 2, 19). Maria sabe reconhecer os vestígios do
Espírito de Deus tanto nos grandes acontecimentos como naqueles que parecem
imperceptíveis. É contemplativa do mistério de Deus no mundo, na história e na
vida diária de cada um e de todos. É a mulher orante e trabalhadora em Nazaré,
mas é também nossa Senhora da prontidão, a que sai «à pressa» (Lc 1, 39) da sua
povoação para ir ajudar os outros. Esta dinâmica de justiça e ternura, de
contemplação e de caminho para os outros faz d’Ela um modelo eclesial para a
evangelização. Pedimos-Lhe que nos ajude, com a sua oração materna, para que a
Igreja se torne uma casa para muitos, uma mãe para todos os povos, e torne
possível o nascimento dum mundo novo. É o Ressuscitado que nos diz, com uma
força que nos enche de imensa confiança e firmíssima esperança: «Eu renovo
todas as coisas» (Ap 21, 5). Com Maria, avançamos confiantes para esta
promessa, e dizemos-Lhe:
Virgem e Mãe Maria,
Vós que, movida pelo Espírito,
acolhestes o Verbo da vida
na profundidade da vossa fé humilde,
totalmente entregue ao Eterno,
ajudai-nos a dizer o nosso «sim»
perante a urgência, mais imperiosa do que nunca,
de fazer ressoar a Boa Nova de Jesus.
Vós, cheia da presença de Cristo,
levastes a alegria a João o Baptista,
fazendo-o exultar no seio de sua mãe.
Vós, estremecendo de alegria,
cantastes as maravilhas do Senhor.
Vós, que permanecestes firme diante da Cruz
com uma fé inabalável,
e recebestes a jubilosa consolação da ressurreição,
reunistes os discípulos à espera do Espírito
para que nascesse a Igreja evangelizadora.
Alcançai-nos agora um novo ardor de ressuscitados
para levar a todos o Evangelho da vida
que vence a morte.
Dai-nos a santa ousadia de buscar novos caminhos
para que chegue a todos
o dom da beleza que não se apaga.
Vós, Virgem da escuta e da contemplação,
Mãe do amor, esposa das núpcias eternas
intercedei pela Igreja, da qual sois o ícone puríssimo,
para que ela nunca se feche nem se detenha
na sua paixão por instaurar o Reino.
Estrela da nova evangelização,
ajudai-nos a refulgir com o testemunho da comunhão,
do serviço, da fé ardente e generosa,
da justiça e do amor aos pobres,
para que a alegria do Evangelho
chegue até aos confins da terra
e nenhuma periferia fique privada da sua luz.
Mãe do Evangelho vivente,
manancial de alegria para os pequeninos,
rogai por nós.
Amen. Aleluia!
Dado em Roma, junto de São Pedro, no encerramento do Ano da Fé, dia 24
de Novembro – Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo – do ano
de 2013, primeiro do meu Pontificado.
[Franciscus PP]
ÍNDICE
1. Alegria que se renova e comunica [2-8] ……………………….. 2
2. A doce e reconfortante alegria de evangelizar [9-10] ………….. 6
Uma eterna novidade [11-13] ……………………...…………………….. 7
3. A nova evangelização para a transmissão da fé [14-15] ………….. 9
A proposta desta Exortação e seus contornos [16-18] …..…………….. 11
Capítulo IA TRANSFORMAÇÃO MISSIONÁRIA DA IGREJA
1. Uma Igreja «em saída» [20-23] …..………………………..……….. 13
«Primeirear», envolver-se, acompanhar, frutificar e festejar [24] ..…..
14
2. Pastoral em conversão [25-26] …..…………………………...…….. 16
Uma renovação eclesial inadiável [27-33] …..……………….………….. 17
3. A partir do coração do Evangelho [34-39] …..……………...…….. 21
4. A missão que se encarna nas limitações humanas [40-45] ...….. 23
5. Uma mãe de coração aberto [46-49] …..………………….....…….. 27
Capítulo IINA CRISE DO COMPROMISSO COMUNITÁRIO
1. Alguns desafios do mundo actual [52] …..…………………....…….. 30
Não a uma economia da exclusão [53-54] …..…………………....…….. 30
Não à nova idolatria do dinheiro [55-56] …..…………………....…….. 31
Não a um dinheiro que governa em vez de servir [57-58] …...…….. 32
Não à desigualdade social que gera violência [59-60] …..…………….. 33
Alguns desafios culturais [61-67] …..…………………...............…….. 35
Desafios da inculturação da fé [68-70] …..…………………....…….. 38
Desafios das culturas urbanas [71-75] …..…………………....…….. 40
2. Tentações dos agentes pastorais [76-77] …..……..……....…….. 42
Sim ao desafio duma espiritualidade missionária [78-80] …....…….. 43
Não à acédia egoísta [81-83] …..………………….........................…….. 45
Não ao pessimismo estéril [84-86] …..…………………...............…….. 46
Sim às relações novas geradas por Jesus Cristo [87-92] …..………….….. 48
Não ao mundanismo espiritual [93-97] …..…………………....……... 51
Não à guerra entre nós [98-101] …..…………………...............…….. 53
Outros desafios eclesiais [102-109] …..…………………....…………..... 55
Capítulo IIIO ANÚNCIO DO EVANGELHO
1. Todo o povo de Deus anuncia o Evangelho [111] …..……….…….. 60
Um povo para todos [112-114] …..…………………...............…….. 60
Um povo com muitos rostos [115-118] …..…………………....……... 62
Todos somos discípulos missionários [119-121] …..……………...…….. 65
A força evangelizadora da piedade popular [122-126] …..……….…….. 66
De pessoa a pessoa [127-129] …..………………….........................…….. 69
Carismas ao serviço da comunhão evangelizadora [130-131] …....….….. 70
Cultura, pensamento e educação [132-134] …..………………....…..…..... 71
2. A homilia [135-136] …..………………………………..……………... 72
O contexto litúrgico [137-138] …..…………………....……………….….. 73
A conversa da mãe [139-141] …..………………….........................…….. 74
Palavras que abrasam os corações [142-144] …..………….......…….. 75
3. A preparação da pregação [145] …..…………………....………...….. 77
O culto da verdade [146-148] …..………………….........................…….. 77
A personalização da Palavra [148-151] …..…………………....….….. 79
A leitura espiritual [152-153] …..……………………………….....…….. 81
À escuta do povo [154-155] …..…………………..........................…….. 82
Recursos pedagógicos [156-159] …..…………………....………..….. 84
4. Uma evangelização para o aprofundamento do querigma [160-162] . 85
Uma catequese querigmática e mistagógica [163-168] …..……….…….. 87
O acompanhamento pessoal dos processos de crescimento [169-173] ….... 90
Ao redor da Palavra de Deus [174-175] …..………………….....…….. 92
Capítulo IVA DIMENSÃO SOCIAL DA EVANGELIZAÇÃO
1. As repercussões comunitárias e sociais do querigma [177] ….... 94
Confissão da fé e compromisso social [178-179] …..………………….... 94
O Reino que nos chama [180-181] …..…………………....………...….. 96
A doutrina da Igreja sobre as questões sociais [182-185] …….…….. 97
2. A inclusão social dos pobres [186] …..…………………....……... 99
Unidos a Deus, ouvimos um clamor [187-192] …..…………………..... 99
Fidelidade ao Evangelho, para não correr em vão [193-196] …..…….... 102
O lugar privilegiado dos pobres no povo de Deus [197-201] …..…….... 105
Economia e distribuição das entradas [202-208] …..………………….... 108
Cuidar da fragilidade [209-216] …..……………………………….... 110
3. O bem comum e a paz social [217-221] …..………………………...... 114
O tempo é superior ao espaço [222-225] …..………………………...... 115
A unidade prevalece sobre o conflito [226-230] …..………………….... 117
A realidade é mais importante do que a ideia [231-233] …..…………...... 118
O todo é superior à parte [234-237] …..……………………………….... 120
4. O diálogo social como contribuição para a paz [238-241] …..……... 121
O diálogo entre a fé, a razão e as ciências [242-243] …..…………...... 123
O diálogo ecuménico [244-246] …..……………………………........ 124
As relações com o Judaísmo [247-249] …..………………………...... 125
O diálogo inter-religioso [250-254] …..……………………………….... 126
O diálogo social num contexto de liberdade religiosa [255-258] ….... 129
Capítulo VEVANGELIZADORES COM ESPÍRITO
1. Motivações para um renovado impulso missionário [262-263] ….... 133
O encontro pessoal com o amor de Jesus que nos salva [264-267] ….... 134
O prazer espiritual de ser povo [268-274] …………………………….... 137
A acção misteriosa do Ressuscitado e do seu Espírito [275-280] ….... 140
A força missionária da intercessão [281-283] ……………………….. 144
2. Maria, a Mãe da evangelização [284] ……………………………... 145
O dom de Jesus ao seu povo [285-286] …………………………….... 145
A Estrela da nova evangelização [287-288] …………………………….... 146
(Rádio Vaticana/news.va/MEM)
(26 de Novembro de 2013) © Innovative Media Inc.
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